lundi 27 octobre 2025

O trono

Um novo desenho foi pendurado na parede do gabinete de Lucian.
Ignatius, ora de sobrolho franzido, ora com ar surpreendido, está sentado numa poltrona baixa. Segura a bengala — um pau vulgar que contrasta com a elegância do seu fato.
Lucian, ligeiramente afastado, fala em voz baixa.

Lucian
Ignatius, retomemos por um instante este desenho… o trono, a goela, a língua vermelha, o pequeno homem de fato escuro.
Da última vez que falámos, disse-me que já não sabia “quem devorava quem.”

Ignatius
Sim. Há aqui um frente-a-frente, mas também uma espécie de espiral: a figura esconde-se atrás de uma goela e encara outra, idêntica.
É como se estivesse diante do seu próprio reflexo monstruoso.

Lucian
Muito bem. É isso que eu gostaria de explorar hoje: esse confronto — mas através de duas leituras possíveis, duas formas de compreender o que ali está.

Ignatius (inclinando-se ligeiramente)
Estou a ouvir.

Lucian
Para Freud, este desenho seria a representação de um conflito psíquico.
Veria aqui o eu — essa pequena figura elegante, frágil, razoável — em luta com as forças arcaicas do id.
O trono, que ganha vida, que se transforma em boca, encarna a ameaça do transbordamento: o poder aparente do eu repousa sobre uma besta adormecida.

Ignatius
Então o assento do poder… seria também o assento do perigo?

Lucian
Exactamente. Aquilo que julgamos dominar funda-nos tanto quanto nos ameaça.
É a própria imagem da repressão: o que tivemos de conter para nos tornarmos civilizados, mas que ainda ruge sob a estrutura.

Ignatius (a reflectir)
Freud veria, portanto, nessa língua vermelha, uma pulsão — um resto de vida bruta?

Lucian
Sim. Um movimento de desejo ou de vitalidade que procura exprimir-se — mas que, não podendo fazê-lo directamente, se transforma em chama.
É a mesma energia, apenas deslocada. O erótico torna-se espiritual; a boca torna-se fogo.

Ignatius
E o medo da personagem?

Lucian
É o medo de perder o controlo, o receio da regressão.
Freud diria: a cena representa o risco de ser engolido pelas próprias pulsões, por aquilo que o supereu considera inaceitável.

Ignatius
Um combate entre a razão e a matéria… ou antes, entre o supereu e o id.

Lucian
Sim — e o eu, no meio, tenta manter o equilíbrio.
Para Freud, este desenho é uma imagem da repressão: representa aquilo que a personagem teme, para o manter à distância.

Ignatius
E quanto a Jung? Imagino que ele seria menos desconfiado em relação ao monstro.

Lucian (sorrindo)
Muito menos. Jung veria aqui uma cena de passagem, um momento iniciático.
O que Freud chama “monstro”, ele chamaria “símbolo do Si-Mesmo”.

Ignatius
O Si-Mesmo no sentido de totalidade?

Lucian
Exactamente. O Si-Mesmo é o conjunto do que somos — consciente e inconsciente, luz e sombra.
Jung diria: esta goela aberta não é uma armadilha, é um portal.
Convida-nos a descer às nossas próprias profundezas para nos unificarmos.

Ignatius
Então, onde Freud vê o risco de regressão, Jung vê um processo de expansão.

Lucian
Muito bem dito. Freud procura manter o eu em equilíbrio; Jung convida-o a deixar-se atravessar pelo inconsciente para se tornar mais vasto.
A goela, para ele, já não é o órgão que engole, mas o limiar da transformação.

Ignatius
E a língua de fogo?

Lucian
Continua a ser uma energia — mas de outra ordem.
Deixa de ser uma pulsão a reprimir ou a sublimar: é o fogo do Si-Mesmo, o espírito vivo que procura comunicar com a consciência.
A mesma chama interior — vista não como perigo, mas como inspiração.

Ignatius (pensativo)
Curioso… A mesma imagem pode ser lida como uma ameaça ou como um apelo.

Lucian
É o cerne de toda a psicologia das profundezas: o que nos assusta na sombra é, muitas vezes, o que quer nascer na luz.

Ignatius
Mas então, Lucian… em ambos os casos, o eu — aquele pequeno homem — está em posição de fraqueza.
Em Freud, defende-se; em Jung, hesita.
Há algum momento em que ele age?

Lucian
Em Freud, agir é manter a barreira.
Em Jung, é consentir em atravessá-la.
Ou seja: para Freud, a salvação vem do controlo; para Jung, da entrega — ou, digamos, da confiança.

Ignatius
E o senhor, entre estas duas visões?

Lucian (após um silêncio)
Diria que observam duas vertentes da mesma montanha.
Freud descreve a ascensão — o esforço de se separar da besta.
Jung fala da descida — o momento em que se compreende que a besta também faz parte de nós.
Um protege a fronteira; o outro atravessa-a.

Ignatius (acenando com a cabeça)
Talvez seja uma questão de maturidade interior.
Freud para a construção do eu; Jung para a sua superação.

Lucian
Disse tudo. Começamos por aprender a manter-nos de pé diante do monstro e, um dia, descobrimos que ele nos estendia a mão.

Ignatius
Então, se bem entendo… Freud diria: “Tem cuidado com esse fogo, pode consumir-te.”
E Jung: “Aproxima-te, pode iluminar-te.”

Lucian (sorrindo)
Sim. Um fala do perigo do desejo, o outro da sua virtude transformadora.
Mas ambos reconhecem que esse fogo é o próprio coração da vida psíquica.

Ignatius (após um longo silêncio)
E eu, que pensava ter desenhado um pesadelo… talvez fosse um auto-retrato em pleno incêndio.

Lucian
Talvez. Mas lembra-te, Ignatius: no incêndio interior, não se trata de fugir — trata-se de aprender a não se consumir, e às vezes… de se tornar luz.

Lucian cala-se.
Ignatius continua a olhar o desenho. O seu rosto suavizou-se.

 
 

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