jeudi 23 octobre 2025

V. O homem e o monstro: o mesmo sopro

 
 “Porque o monstro não é aquilo que imaginamos.
Não está lá fora, escondido nas florestas ou nas profundezas do mar. Está dentro de nós, e quem tenta destruí-lo, destrói-se a si mesmo. Talvez devamos, antes, reconhecê-lo, acolhê-lo, deixá-lo respirar. Pois dentro dele reside a parte mais antiga do nosso sopro, a que nos liga à noite do mundo e ao seu princípio. E se conseguirmos não desviar o olhar, então, no seu olhar sombrio, algo de divino olha de volta para nós.”

Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge
 
 

— Diga-me, Lucian… pareceu-me, sem querer ser indiscreto, que não se limita a escrever nesse caderno que tanto o ocupa e… se não me engano, virou habilmente a página quando me aproximei demais de si…
— Ouça, meu amigo, o homem e o monstro são as duas faces de um mesmo ser: um do lado do visível, o outro do lado do oculto.
— Como no seu caderno!
— Respondem-se como a onda e o seu reflexo.
E se a figura por vezes desaparece na luz,
é porque passou a pertencer ao ciclo do Leviatã:
volta à superfície no olhar do espectador.
Eu pressentira-o, e ele previra-o:
— O monstro e o homem estão ligados como o fundo e a figura.
Um só existe através do outro.
E o observador, de tanto olhar, acaba por se tornar parte do monstro.
 
O crítico submerso
— Sabe, escrevo e dou por mim a perceber que já não falo dele, mas de mim…
— Foi o que pensei ter distinguido da última vez que olhei para esse desenho…
— Porque cada vez que descrevo uma imagem, entro nela. Torno-me esse náufrago. Faço parte do monstro. Também eu sou engolido por aquilo que contemplo.
— É exatamente isso que vejo, a figura mudou… ou talvez sempre tenha sido o senhor! Será o senhor o autor do desenho que adquiri naquela galeria de que lhe falei? Nesse caso, compreendo melhor agora… Uma pequena parte do mistério esclarece-se. Sem realmente confirmar essa hipótese, e sem se deter nela, continuou:
— O olhar crítico não é uma análise à distância: é uma descida à imagem. O crítico é um mergulhador. Cada frase é um mergulho em apneia. E quando volta à superfície, já não sabe bem o que viu, apenas que isso o transformou.

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