Caderno de Lucian n.º 7, páginas nocturnas
Há em Don Carotte, e surpreendo-me a chamá-lo assim, como se o seu nome não fosse, desde o início, uma ficção consciente de o ser, uma forma de falar das ilhas vulcânicas que me devolve sempre, irresistivelmente, à infância.
Não à sua infância tal como ele ma contou (não contou nada), mas à infância tal como ela transpira, exala, se deposita nos interstícios dos seus relatos, como o vapor de um cratero deixa adivinhar a câmara de fogo que oculta.
Hoje, pela primeira vez, algo vibrou em mim, uma intuição tão fugaz que poderia ter passado por um capricho do meu pensamento, quando o seu olhar se obscureceu ao pronunciar esse nome: “Sang Chaud”.
Não soube porquê, mas impôs-se uma imagem: não uma ilha, não um vulcão, mas um circo.
Um circo: estrutura efémera, que se instala num terreno nu como um acampamento nómada, ergue um círculo de lona, cordas e vigas tensionadas, e desaparece tão depressa quanto veio, deixando atrás de si uma impressão de vazio, de lugar abandonado.
Sim… o circo tem algo do cratera; não apenas pela forma, esse círculo preciso, essa geometria de luz encerrada, mas pela sua própria vocação: concentrar a atenção, reunir numa única arena um tumulto de gestos, riscos, equilíbrios improváveis.
A pista… esse palco circular onde tudo pode acontecer, onde cada queda é um acontecimento, cada ascensão uma promessa.
Parece-me que Don Carotte deve ter nascido — pelo menos psiquicamente — numa pista assim.
Um lugar onde a criança aprende cedo demais que o mundo não é estável: constrói-se, desmonta-se; erguem-se mastros, cravam-se estacas para segurar tudo pela manhã e arrancam-se à noite.
Um mundo onde as coisas têm apenas uma duração provisória, e onde só se pode contar com a sua metamorfose.
Daí, talvez, essa desconfiança em relação às palavras: assemelham-se demasiado aos números de circo — aparições calculadas, desaparecimentos rápidos. Julga-se tê-las na mão; já não estão lá.
E depois há essa história, meio sussurrada, de um burro que teria sido “quase sua ama”.
Não insisti; mas essa imagem instalou-se em mim como uma evidência arcaica.
O burro: figura humilde, paciente, aquela sobre a qual nos inclinamos com negligência, mas que carrega, na tradição mais antiga, um saber obscuro do tempo, do esforço, do silêncio.
Ama — quase: esse “quase” diz mais do que a palavra.
Confia-se a um burro o que não se quer confiar a uma mãe.
Ou então a mãe não estava lá, e a criança encontrou calor noutra forma — mais sólida, mais lenta, menos mutável, um corpo que não fala, não escapa, não se desmonta como as tendas do circo.
Talvez a charada de Don Carotte resida aqui, nesse duplo nascimento, de lona e de pele: um primeiro mundo feito de mudança incessante, um segundo feito de presença muda, quase mineral, de onde deriva a sua relação tão estranha com a palavra.
Poder-se-ia dizer que algo se joga neste “entre-dois lugares”, entre a pista onde a luz irrompe e a sombra estável do animal.
Alguns falariam do “ponto onde o sujeito surge da falta que o constitui”, esse lugar onde a criança, vendo um circo desdobrar-se diante dos seus olhos, compreende confusamente que nada é dado de uma vez por todas — nem os chapitôs, nem os laços de amor.
E eu, modesto Lucian, simples depositário dos seus relatos, noto que o arquipélago de que ele fala, sempre móvel, mascarado, deslocado, se parece estranhamente com esse circo primordial: instala-se, desfaz-se, ilumina-se, ameaça, lança ao ar jactos de fogo como um malabarista furioso.
É daí, talvez, que vem Sang Chaud.
Não um companheiro real, mas uma figura de infância — talvez um artista, talvez um domador, talvez uma criança como ele, ou uma condensação de várias silhuetas entre as quais o pequeno Don Carotte nunca soube escolher.
Anoto tudo isto sabendo que a verdade, se existir, não surgirá por dedução, mas por um lapso.
Por um “mal dito” onde se revelará o que permaneceu tempo demais calado.
O circo espera a sua hora.
A pista, sinto-o, já brilha com uma luz imperceptível.
E ele, Don Carotte, gira à sua volta sem ainda ousar entrar.
Quando ele falar do circo, saberei que nos aproximamos do coração incandescente da sua história.
E então talvez, nesse círculo de significantes que se montam e desmontam, apareça enfim a criança que ele foi:
aquele que olhava o mundo sob a lona, de boca aberta, com um burro por ama e um vulcão por horizonte.

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