“Quando a palavra «espírito» sai da boca do Papalagi, os seus olhos tornam-se grandes, redondos e fixos; o peito ergue-se, ele respira profundamente e assume a atitude do guerreiro que venceu o inimigo. Pois tem um orgulho particular neste «espírito».
Não se trata aqui do Grande Espírito todo-poderoso que os missionários chamam «Deus» e de quem nós não seríamos senão uma miserável reprodução, mas sim do pequeno espírito que permite ao homem pensar.
Quando, daqui, olho para a mangueira que está atrás da igreja, isso não é espírito, estou apenas a vê-la. Mas se me dou conta de que ela é mais alta do que a igreja, isso é espírito. Não basta, portanto, olhar para uma coisa; é preciso também tirar dela um saber.”
O Papalagi, Erich Scheurmann, Pocket
Lucian, tão frequentemente rápido, vivo, mordaz, imobiliza-se. Pela primeira vez, vê-se a si próprio no desenho que supõe ser da mão de Igniatius — e que Igniatius, que lho trouxe… acredita ser da mão de Lucian…
— Não faz assim tanto tempo que nos encontramos… Ele diz-me que os encontrou numa galeria… mas devo confessar-lhe que duvido muito disso… A minha opinião é que ele é o autor…
Mas… como poderia ele ter feito todos estes desenhos em tão pouco tempo?
Félix retoma a palavra, a pensar e a murmurar… como para si mesmo.
— É a sua semelhança que acaba… enfim… de ser revelada por ele… numa espécie de silêncio que já não era vazio, mas profundidade.
Félix e Lucian continuavam a examinar o desenho à luz oblíqua do candeeiro, uma luz quase crua que, por um estranho acaso, acentuava os traços do rosto esboçado no papel ao ponto de lhe dar um ar mais vivo, como se a linha em si respirasse.
— Félix… este rosto…
Félix ergueu os olhos, vivo, atento, pronto a acolher a confissão. Lucian inspirou, e a sua voz subiu um tom:
— Este rosto… não se parece apenas comigo.
Félix franziu ligeiramente o sobrolho, intrigado.
— Como assim?
Lucian passou a mão pela testa, como um homem que abandona uma pele demasiado apertada.
— Parece-se… tanto, se não mais… com o Igniatius.
Seguiu-se um silêncio tão nítido que se poderia pensar que o ar acabara de sair da sala.
Félix ficou imóvel.
— Acha que se parece com o Igniatius? — disse, com uma voz que, desta vez, já não tinha a leveza habitual.
Lucian acenou com a cabeça.
— Sim. Não lho disse, e não sei porque é que não lho disse. Talvez porque não quisesse admiti-lo, talvez porque me assustasse. Mas aqui vai a verdade: da primeira vez que Don Carotte… quero dizer, Igniatius… me mostrou estes desenhos, tive a impressão desconcertante, quase estonteante, de que esse rosto… essa figura inclinada sobre as ilhas, a observar e a sofrer tempestades e vulcões… esse perfil que está sempre um pouco à margem… era ele tanto quanto eu.
Félix levantou-se bruscamente — o que, vindo dele, valia por um grito. Deu alguns passos pela sala, como se precisasse de abrir espaço em volta dessa frase que acabava de abrir uma brecha.
— Santo Deus, murmurou. Santo Deus… então isso quer dizer…
Lucian não disse nada, mas os seus olhos procuravam os de Félix, como um homem à beira de um precipício procura um ponto onde pousar o pé.
Félix voltou lentamente para a mesa, apoiou-se nela com os cotovelos e fixou os desenhos como se os visse pela primeira vez.
— Lucian… se o rosto se parece consigo… e com o Igniatius… então já não estamos no simples transfer. Já nem sequer estamos no “tu representas aquilo que me falta”.
Suspirou:
— Estamos na… sobreposição.
Lucian pestanejou.
— Sobreposição?
— Sim, disse Félix, e isso é infinitamente mais raro. É quando dois sujeitos, cada um a partir da sua margem, confundem um mesmo terceiro, um mesmo rosto simbólico, e ambos começam a habitá-lo. Como se, sem o saberem, viessem do mesmo lugar de falta. Como se fossem, um para o outro, a mesma silhueta esburacada que margeia o vazio.
Acrescentou, com uma intensidade quase dolorosa:
— Lucian… não é simplesmente que ele o vê.
Lucian sentiu um arrepio na nuca.
— Félix… acha que… que nós nos parecemos?
Félix sorriu — um sorriso triste, inquieto, admirado.
— Não sei se vocês se parecem, Lucian.
Pegou novamente no desenho.
— Veja: esta figura… não é totalmente o senhor, nem totalmente ele. É um entre-dois. Um rosto impossível. Um rosto entrançado a partir de duas solidões que procuram uma forma.
Pousou o desenho com uma lentidão estudada.
— E agora… ouça bem: o facto de este rosto ter aparecido no desenho dele e não no seu significa que é ele quem assumiu, para ambos, a função de revelação. Ele devolve-lhe uma imagem que nunca poderia ter produzido sozinho, mas que ele podia “tocar” porque viveu no puro falta.
Interrompeu-se.
Depois, com uma doçura violenta, quase siboniana:
— Lucian, não é ele que se parece consigo.
Lucian empalideceu.
Félix murmurou, como quem confia um segredo:
— E se esta figura… viesse de antes de si?
Lucian fechou os olhos.
Félix pousou-lhe suavemente a mão no ombro:
— Não é o Igniatius que inventa a vossa semelhança.
O silêncio volta a cair sobre a cena…
Lucian estendeu a mão, pegou delicadamente no desenho que Félix lhe estendia e aproximou-o um pouco mais de si, como para o evitar e enfrentá-lo ao mesmo tempo.
— É que ocupa, no imaginário dele, o mesmo espaço que ele ocupa no seu. Mas… pode acontecer que nele o senhor se reconheça, e que seja o senhor a parecer-se com uma figura que ele “desenterrou”…
— Onde a terá encontrado?
— Que sei eu… na sua mente… num lugar onde o senhor nunca olhou? Num silêncio que carrega sem ter palavras para ele?
Um vertigem atravessou Lucian — a vertigem de um homem que vê rasgar-se o pano da sua própria origem.
Félix voltou a falar em voz baixa, como se se dirigisse a si mesmo.
Lucian, até então petrificado, sentiu de súbito subir dentro de si uma onda, um mal-estar familiar e, ao mesmo tempo, uma necessidade irreprimível. O silêncio adensou-se, tornou-se quase sólido entre os dois.
E foi então, nesse silêncio esticado como um fio onde a mínima palavra poderia fazer tudo bascular, que Lucian murmurou, com uma voz baixa, quase estrangulada, como se falasse através de uma fenda que nunca soubera… nem ousara… olhar.

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