« Talvez seja preciso voltar à natureza da coragem que implicam as operações imagéticas constitutivas do sujeito desejante.
Essa coragem não tem nada de virtude guerreira nem heróica.
O sujeito que imagina não é um herói de epopeia.
Prefiro introduzi-la colocando-me na sombra de uma grande voz, a de Walter Benjamin.
A pergunta que Benjamin coloca é a seguinte, e é, a meu ver, também a nossa:
Em que consiste o núcleo poético da obra, aquele que lhe dá a sua forma acabada, determinando de modo puramente formal qual é a tarefa do poeta, independentemente de qualquer conteúdo, de qualquer comunicação — isto é, em que medida ele constrói a liberdade daquele a quem se dirige?
É esta pergunta explícita que colocamos à imagem quando perguntamos:
Em que consiste a tarefa do produtor de imagens quando ele dá à imagem que cria a forma da liberdade daquele a quem se dirige?
Eis o que escreve Benjamin:
“Os dois poemas estão ligados no seu núcleo poético, isto é, numa certa atitude face ao mundo. Essa atitude é a coragem que, quanto mais profundamente é compreendida, menos é um carácter individual do que uma relação do homem com o mundo e do mundo com o homem. […]
A coragem é dom de si ao perigo que ameaça o mundo. […]
O corajoso tem consciência do perigo, mas não lhe dá ouvidos. Pois seria um cobarde se lhe desse ouvidos; e se não tivesse consciência do perigo — não seria corajoso. A solução desta estranha relação é que o perigo não ameaça o corajoso em si, mas o mundo. A coragem é o sentimento da vida próprio daquele que se entrega ao perigo. […]
A grandeza do perigo surge no corajoso. Apenas porque o perigo o atinge, no seu abandono total ao perigo, é que também atinge o mundo.”
E mais adiante Benjamin cita Schiller, nas Cartas sobre a educação estética do homem:
“O verdadeiro segredo do mestre-artista consiste, portanto, em destruir a matéria pela forma. A alma do espectador e do ouvinte deve conservar intacta a sua plena liberdade; quando se afasta do círculo de encantamentos operados pelo artista, deve estar tão pura e perfeita como ao sair das mãos do Criador.”*»
Marie-José Mondzain, Homo spectator, Bayard, pp. 68–69
* Cf. Walter Benjamin, Œuvres I, Folio essais, Gallimard, “Deux Poèmes de Friedrich Hölderlin”, pp. 117–124.
* Cf. Walter Benjamin, Œuvres I, Folio essais, Gallimard, “Deux Poèmes de Friedrich Hölderlin”, pp. 117–124.
Lucian começara a interpretar um esboço que fizera no seu caderno e ainda não tinha acabado de o contar quando Félix, o seu supervisor — a quem agora recorria regularmente desde que aceitara estar numa espécie de conflito latente com Igniatius, também chamado Don Carotte —, que até então permanecera atento e silencioso, ergueu de súbito um dedo, como para apanhar um significante em pleno voo.
— Stop.
Inclinou-se para a frente.
Os olhos brilhavam de uma inteligência aguda, quase marota. Uma maneira de ser alegre sem nunca ser complacente.
— Diz que ele viu as suas notas e os seus esboços… murmurou. Mas sobretudo, diz que deixou o caderno aberto. Ou melhor… que lho “deixou a ele”. Vê a diferença?
Lucian inspirou longamente.
— Claro… mas não foi voluntário.
— Voluntário? Félix riu. Um riso seco, quase lacaniano. Não há “voluntário”. Há apenas o desejo, que arranja as coisas de modo a esquecermos as tampas que deixámos abertas.
Depois, sem avisar, Félix pegou num dos desenhos de Igniatius — o do vulcão “em torção” — e colocou-o ao lado de uma página do caderno em que Lucian, maquinalmente, esboçara uma forma semelhante.
— Stop.
Inclinou-se para a frente.
Os olhos brilhavam de uma inteligência aguda, quase marota. Uma maneira de ser alegre sem nunca ser complacente.
— Diz que ele viu as suas notas e os seus esboços… murmurou. Mas sobretudo, diz que deixou o caderno aberto. Ou melhor… que lho “deixou a ele”. Vê a diferença?
Lucian inspirou longamente.
— Claro… mas não foi voluntário.
— Voluntário? Félix riu. Um riso seco, quase lacaniano. Não há “voluntário”. Há apenas o desejo, que arranja as coisas de modo a esquecermos as tampas que deixámos abertas.
Depois, sem avisar, Félix pegou num dos desenhos de Igniatius — o do vulcão “em torção” — e colocou-o ao lado de uma página do caderno em que Lucian, maquinalmente, esboçara uma forma semelhante.
As duas imagens respondiam-se como dois espelhos ligeiramente deformados.
Félix semicerrrou os olhos.
— Está a ver? disse ele. Vê como ele vê.
Lucian empalideceu.
Quis falar, defender-se, mas Félix retomou a palavra antes que um som saísse:
— E o Igniatius viu isso. Viu-o antes de si. Pensa que o senhor é o autor desses desenhos. Ou melhor: pensa que o senhor poderia ser. Não é uma questão de identidade, é uma questão de… como dizer… assinatura do olhar.
Deu uma pequena pancada no desenho com o dedo.
— Quando duas linhas se parecem demasiado, o sujeito procura o autor. E como o senhor era o mais próximo, escolheu-o.
Lucian fechou os olhos.
— Ele disse-me que reconhecia qualquer coisa nesses desenhos…
— Sim, disse Félix. Ele reconhece o Outro. E o Outro, para ele, neste momento… é você.
Recostou-se, entrelaçou os dedos atrás da cabeça — atitude falsamente descontraída que precedia sempre uma análise decisiva.
— Não se dá conta do que aconteceu. Para ele, esses desenhos são fragmentos de si próprio. Pensava reconhecer-se na imagem. E de repente reconhece essa mesma imagem no seu caderno. Isto não é interpretação: é filiação simbólica. O senhor torna-se o lugar de onde vêm os desenhos. Noutras palavras: torna-se, para ele, a origem que nunca teve.
Lucian estremeceu.
Félix continuou:
— A criança sem pais procura um autor. É mecânico, inexorável. Procura aquele que escreve o que sente. Aquele que sabe antes dele o que ele está a começar a dizer. Aquele que ouve as trovoadas antes de elas começarem a falar. E aqui… o que fez… esse caderno aberto…
Sorriu de forma quase cruel.
— É um presente. Uma armadilha. Um sinal. Chame-lhe o que quiser. Mas, em qualquer caso, é um convite a entrar nos bastidores. Ora, na relação analítica, os bastidores são precisamente aquilo que deve manter fechado.
Lucian apertou as mãos e murmurou:
— Eu… eu não queria que ele lesse.
— Acredito em si, disse Félix. Mas o seu inconsciente, esse, queria que ele encontrasse. Porque precisa, tanto quanto ele, que alguém leia aquilo que não ousa dizer.
Félix endireitou-se, cravando o olhar no de Lucian.
— Se o Igniatius pensa que o senhor é o autor dos desenhos, é porque os viu com o mesmo olhar. Reconheceu qualquer coisa no arquipélago dele. E esse qualquer coisa… é você. Aqui não pode fingir o “eu-não-sei”. O sujeito não é parvo. Ele sabe de onde vêm as linhas que o desenharam.
Lucian sentiu um calor confuso na garganta.
— Mas eu nunca desenhei esses vulcões…
— Isso, meu caro, é a sua realidade factual. Mas ele está-se nas tintas para isso. Ele vê outra coisa: a sua capacidade de desenhar através dele. Ou seja: de se projectar. De sentir antes das palavras. De pressentir o que ele vai dizer antes de o dizer. Para um sujeito abandonado, isso é insuportável e vital ao mesmo tempo.
Pousou a mão no ombro de Lucian — gesto raro, quase solene.
— Tornou-se o escriba da sua origem. Isso não quer dizer que seja a origem. Mas, no imaginário dele, e portanto no transfer, é equivalente.
Félix levantou-se, deu alguns passos pela sala, e voltou para junto dele:
— Tem de aceitar a ideia de que está apanhado no intervalo. O intervalo entre o que ele lhe pede e o que pode dar. O intervalo entre o que ele perdeu e o que o senhor representa. O intervalo entre o que escreve e o que revela de si, sem o querer.
Depois, suavemente:
— Esse intervalo… é aí que o trabalho se faz. É aí que arde. É aí que vocês estão, um para o outro, numa relação que já não é neutra, e que não deve tornar-se fusional.
Recolheu os desenhos e pousou-os entre os dois.
— A pergunta agora, Lucian, já não é: “Porque é que o Igniatius pensa que fui eu que desenhei isto?”
A pergunta não é essa… ou não só. As perguntas deveriam ser:
O que é que estes desenhos despertam em si que nunca viu?
E: Porque é que, no momento exacto em que ele procura um autor, é a mim… enfim… a si que escolhe para o ser?
Concluiu, com grande delicadeza:
— Deixou o seu caderno aberto. Agora vai ter de aceitar abrir qualquer coisa em si.
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