“Conheciam-se há tanto tempo, e cada um deles sabia bem de mais o que o outro ia dizer antes mesmo de abrir a boca.
Haverá um momento, na maioria das relações humanas, em que este tipo de coisa acontece?, perguntava-se ele.
Em que os dois participantes sentem que, na relação, algo de vital morreu?
Costuma descrever-se assim o declínio do amor, mas não será isto ainda mais verdadeiro da amizade?
A relação deles tinha-se endurecido com os anos, ao ponto de cada um sentir que tudo o que o outro fazia ou dizia já tinha sido dito ou feito inúmeras vezes.
A sensação do imprevisto, esse estrume que alimenta as relações humanas, tinha-se esgotado e não fora substituída por nada de novo, e no entanto nenhum dos dois saberia dizer como ou quando isso tinha acontecido.”
Gabriel Josipovici, Goldberg Variations, Les nomades, Quidam éditeur, p. 209
O vento e a chuva começavam apenas a cair quando Lucian tocou à campainha de Félix.
Não tinha dormido.
A noite fora atravessada por frases que não escrevera, por arrepios que não lhe pertenciam e por uma estranha compaixão misturada com vergonha… a vergonha de se sentir atingido pelo relato de um outro.
Félix abriu a porta com um gesto amplo, como um pano de teatro que se levanta sem hesitação.
— Ah! Meu caro Lucian! — exclamou. — Tem a cara de um homem que acaba de ser atacado pelo próprio paciente.
Soltou uma gargalhada estrondosa que não magoava,
mas que soava como um sino… e despertava aquilo que não se queria ver.
Lucian entrou e sentou-se na grande poltrona vermelha, aquela onde, dizia Félix, todos os psicanalistas fazem as suas crises existenciais.
— Félix… preciso de lhe falar de Igniatius.
— Sim! O famoso Don Carotte! Lembro-me…
Félix fechou os olhos e juntou as mãos.
— Suspeitava que ele acabaria por o abalar. Tem esse talento: o narrador inesperado de almas.
Sem responder, Lucian tirou o caderno n.º 7 e pousou-o diante de Félix como se pousasse uma arma descarregada.
Depois desenrolou os desenhos de Igniatius:
os vulcões deformados, a terra que se move, as ilhas que se esticam como membros mal consolidados, a palha, o contorno de um burro, quase um sopro desenhado.
Félix deixou de sorrir imediatamente.
Endireitou-se, sério, o queixo apoiado na mão.
— Fale, Lucian — disse. — Conte-me tudo, desde o princípio. Sem poupar nada.
E Lucian falou. Longamente.
Contou a cena da trovoada, o nome Igniatius a ressurgir como uma pedra reencontrada no fundo de um lago, o paradoxo de uma criança sem pais ouvidos como vozes no tambor do céu, o animal silencioso, refúgio, terceiro, mundo.
Contou a raiva de Igniatius, a sua dor, a sua inversão.
E aquela pergunta que ele lhe tinha lançado e que tanto o tinha abalado:
“Fale-me de si falando de mim.”
Félix acenou em silêncio, depois, antes de falar, pegou no caderno. Folheou-o devagar, como se cada frase fosse uma pedra que tivesse de virar para examinar a face oculta.
Parou na página onde Lucian escrevera:
Se eu não reconhecer a minha própria implicação, ela arrisca distorcer a nossa relação.
— Ah — disse Félix. — Aqui está a frase que soa verdadeira. É aqui que tudo muda.
Pousou o caderno nos joelhos.
— Lucian — disse —, este paciente toca-o. Demais. E não apenas pela sua história. Ele toca-o numa zona que antecede a sua própria narrativa. Já o reconheceu, em parte. Mas ainda não percebeu de onde vem.
Lucian quis protestar, mas Félix ergueu a mão, de modo ao mesmo tempo suave e cortante.
— Não o acuso de nada. Todos os analistas encontram um dia o seu Igniatius. A questão não é “Porque é que isto me acontece?”, mas “Porque é que isto me acontece com ele?”
Pegou num dos desenhos: aquele em que o vulcão parece respirar, quase humano.
— Olhe para isto. O que ele chama “Arquipélago”, você chama “análise”. O que se move nas ilhas dele é o que sente no seu peito. Entrou na metáfora dele como se entra no quarto… ou na cabeça de outro.
Depois acrescentou, inclinando a cabeça:
— E ele sentiu-o. Exactamente como uma criança sem pais sabe reconhecer, antes de lho dizerem, a mínima falha na atenção do adulto.
Félix deixou que o silêncio se estendesse, esse silêncio cheio de concisão que prepara uma incisão.
— Lucian… vou ser brutal, porque precisa que alguém o seja.
Fitou-o directamente nos olhos.
— Ficou comovido porque ouviu, na trovoada dele, algo que conhece. Não sei o quê. Mas o senhor sabe. E Igniatius apercebeu-se disso antes de si.
Lucian baixou os olhos. As mãos tremiam-lhe.
— Eu… eu não entendo… murmurou.
— Pois claro que não entende. Se entendesse, seria menos perigoso.
Agarrou-lhe o pulso com suavidade; Félix nunca toca, excepto em momentos de verdade.
— Ao que tudo indica, tornou-se, para Igniatius, aquilo que o burro foi para ele: aquele que absorve o ruído, aquele que escuta em seu lugar. O que é magnífico. E arriscado.
Lucian sentiu um arrepio atravessá-lo. Félix continuou:
— O problema não é ele analisá-lo — todos os pacientes analisam. O problema é que ele o analisa com justeza. E isso alivia-o tanto quanto o apavora.
Lucian ergueu a cabeça, surpreendido.
Félix sorriu, um sorriso menos jovial, mais cúmplice:
— Ele perguntou-lhe: “Quando escreve sobre mim, é de mim que fala ou de si?”
Pôs a mão sobre o caderno.
— E você, Lucian, não soube responder… Porque não sabe.
Lucian fechou os olhos, por onde uma lágrima escorreu lentamente.
Félix acrescentou:
— Está na altura de ir procurar de onde vem a sua própria trovoada. Não por ele. Por si.
Depois levantou-se, foi buscar um copo de água e pousou-o diante de Lucian.
— Volte às suas notas. E agora… conte-me a sua primeira lembrança de um ruído numa casa demasiado grande.
Lucian, de olhos abertos sobre o abismo e sobre a imagem da sua infância, compreendeu de súbito que a análise tinha basculado, que entrara, apesar de si, no espelho de Igniatius.

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