jeudi 6 novembre 2025

Sapiens narrans (português)

 
« As Vistas de Toledo do pintor conhecido por El Greco são contemporâneas da publicação do romance Dom Quixote: uma máquina ficcional onde uma personagem, como te recordas, é tomada por uma embriaguez narrativa e não cessa de desmentir o mundo, as coisas que o povoam, a natureza que atravessa.
Dom Quixote, à sua maneira, é o anunciador da nossa condição vertiginosa — um devorador de ficções que se torna ele próprio um ser ficcional, a assombrar a sua terra para transformar o que nela encontra. É a própria imagem do Sapiens narrans: um ser que acredita mais nas histórias que tece do que nas provas do corpo e do mundo.
Recorda-te: cai, levanta-se, cai de novo, e torna a levantar-se. A ficção nele é um princípio de reerguimento, um instrumento para evitar a dor; uma mola que lhe permite desmentir a vida, transformando-a através de sucessivos encantamentos narrativos. Nesse sentido, Dom Quixote somos nós: seres de histórias, de codificações, que gostariam de escapar ao veredicto da vida, mas só o conseguem produzindo linguagens, narrativas que a recobrem.»
 
Camille de Toledo, Uma História da Vertigem, Points, p.13 
 
 
 
 
 
– Meu caro Igniatius, para além do trocadilho — que, confesso, me faz sorrir bastante — tem alguma ideia do porquê... ou...?
Lucian, consciente do mal-estar que se instalara entre ele e Igniatius, procura as palavras — algo que raramente lhe acontece.
– Como lhe surgiu a ideia dessa aproximação entre Dom Cenoura e Dom Quixote?
Igniatius ainda está algo irritado, quase rabugento, com as dúvidas que germinaram no seu espírito. Pensa, mais ou menos, que se tornou o objecto do seu amigo Lucian, que, de repente, o repôs no seu lugar de paciente. Ora, paciente ele não é... Além disso, viu — ainda que de relance — que o senhor Lucian, como agora o chama para instaurar uma certa distância entre ambos, desenha nos seus cadernos figuras que se assemelham exactamente aos desenhos que Igniatius julga ter comprado e levado ao consultório...
Daí a pensar que o senhor Lucian seria o autor dessas imagens vai apenas um passo — que ele não hesita em dar, pois, para si, a evidência é clara: o estilo, as cores das páginas que Lucian acrescenta depois da sua saída — seriam provas suficientes... e, além disso, a escrita nos cadernos é tão indecifrável quanto a assinatura nas gravuras trazidas!
 
 
 – Igniatius, creio que, no fundo, é um Homo narrans...
– O que é isso agora?
– Sabe, meu amigo, ser humano não é apenas pensar ou fabricar: é narrar para existir, compreender, recordar e agir. Da epopeia de Homero às mitologias modernas analisadas por Barthes, até ao vertigem metafísica de Borges, a literatura mostra que o homem é um animal simbólico cuja sobrevivência psíquica, social e política depende da narração.
Assim, Sapiens narrans não é um simples complemento de Homo sapiens: é o seu próprio fundamento. Somos seres de histórias, e talvez permaneçamos vivos — na memória do mundo e na nossa própria consciência — apenas enquanto aceitamos narrar e ser narrados.
Até aqui, pensa Igniatius, todo este discurso poderia ser uma boa definição do próprio Lucian...
– Gostaria, caro Mestre, que voltasse à sua pergunta... sobre Dom Quixote e Dom Cenoura, cujo pseudónimo, ao que parece, teria eu criado...
– Pois veja, Igniatius, o homem é muitas vezes definido como Homo sapiens, “aquele que sabe”, ou Homo faber, “aquele que fabrica”. Contudo, essa definição ignora uma faculdade essencial: o homem é aquele que conta histórias.
A noção de Sapiens narrans recorda-nos que o ser humano constrói a sua identidade e a sua relação com o mundo através da narrativa.
Dom Quixote de Cervantes, considerado o primeiro grande romance moderno, encena magistralmente essa ideia: o herói não se limita a viver — narra-se e lê o mundo através dos relatos.
O romance, assim, interroga o poder da ficção na construção da identidade e questiona a nossa necessidade fundamental de narrativa.
Como ilustra Dom Quixote a condição humana enquanto condição narrativa? O herói cervantino torna-se personagem pelo relato, actua sobre o real através do imaginário, e Cervantes revela a natureza profundamente narrativa da existência humana.
– Mas, senhor, Dom Quixote não é apenas uma personagem?...
– Dom Quixote torna-se personagem porque adopta um relato. Alonso Quijano não nasce cavaleiro andante: constrói-se a partir dos livros que lê. Longe de ser louco desde o início, é antes um leitor apaixonado.
Ao impregnar-se dos romances de cavalaria, adopta-lhes a estrutura narrativa até que esta consome a sua identidade.
Para viver como os heróis, precisa narrar a sua vida como uma epopeia.
Muda o nome, baptiza o cavalo, escolhe uma dama a servir, elabora a armadura — tudo isso, primeiro, pela palavra.
Dom Quixote não é apenas uma personagem fictícia: é um homem que se ficcionaliza a si próprio.
Cervantes mostra assim que a identidade nunca é dada, mas fabricada através das histórias, pessoais ou colectivas.
Não é a loucura que cria o cavaleiro: é o relato.
E o relato, seja pela escrita ou pelo teatro, é apenas uma prática para iluminar o mistério do jogo através do qual tudo se joga — quando se joga a ser outro, ou a ser si mesmo, semelhante ao que se acredita* ou deseja
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* Daniel Sibony
 
 
 
 
 

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