vendredi 28 novembre 2025

Simultaneamente

 
«É um esquema extremamente dinâmico e dramático. Vê-se, antes de mais, uma sobreposição de camadas que corresponde àquilo que Freud assinala, em baixo à esquerda, como sendo as “profundezas do recalcamento”. “Cenas” ou representações, eventualmente traumáticas, aí se encontram enquistadas, como pepitas numa espessura de sedimentos.
E depois, tudo isso se ergue literalmente: a partir das imagens depositadas-enterradas, figuradas por Freud sob a forma de pequenos traços horizontais, irrompem três “sintomas”, cada um deles associando várias cenas recalcadas.
A energia desses irrompimentos é enfatizada pela abundância de linhas diagonais, contínuas ou pontilhadas, que vão e vêm, mas convergem todas para essas três pequenas pontas sintomáticas: parecem desenhadas para sugerir ao leitor a ideia de que seriam capazes de rasgar todas as superfícies de protecção. São como “setas do tempo” que se teriam erguido da sua habitual e confortável horizontalidade. São inactuais na medida em que são inesperadas, agressivas, disruptivas e quase, atrevo-me a dizê-lo, tão alegres quanto perigosas. Como lanças erguidas no decurso de alguma procissão revolucionária.»

Georges Didi-Huberman, Imaginer recommencer, Les Éditions de Minuit, p. 62


Caderno de Félix
Notas após a entrevista com Lucian
(caderno cinzento)

Acabo de viver uma dessas sessões em que, por um daqueles volte-faces que só a clínica profunda permite, o analista se vê apanhado na armadilha do seu próprio símbolo.
Lucian trouxe-me um caso complicado; dou por mim com um caso duplo.
A descoberta que fiz — ou melhor, que se fez através de mim — é daquelas que não se podem atribuir simplesmente ao acaso. O rosto que figura nos desenhos, essa figura meio apagada, meio evidente, tão vibrante que se poderia julgá-la viva, parece-se com Lucian e, simultaneamente, com esse Don Carotte que hoje diz chamar-se Igniatius.


Não consigo deixar de ver aí uma forma de telescopagem: duas linhas de subjectividade, duas silhuetas inacabadas que, em vez de se oporem, se recobrem na mesma sombra. Não é uma coincidência: é uma sobreposição.
Isso, em Lacan, assume uma forma muito particular. Quando um sujeito vê o seu próprio rosto no outro, e o outro vê o seu rosto no sujeito, não se trata de um reconhecimento. Também não é um efeito de espelho. É a revelação de um mesmo lugar simbólico onde cada um julga ver o outro quando, na realidade, toca finalmente em si próprio.
Mas aqui a coisa é ainda mais subtil: não foi Lucian que desenhou esta figura, foi Igniatius. E, no entanto, essa figura parece-se com Lucian… tanto quanto com ele.
Digo para mim que a pessoa ou as pessoas que distinguimos ali não são um retrato… antes… um ponto de acesso. Uma porta.
Veio-me à cabeça um desejo curioso. Disse para comigo que, se queria compreender melhor como funcionam, teria também de me pôr a desenhar… e o resultado — um resultado surpreendente — não se fez esperar, apesar da minha incapacidade em tornar legível o fundo do meu pensamento. Depressa se destacou deste pequeno esboço qualquer coisa, uma espécie de iluminação, que consigo relacionar com aquilo que ouvi de Lucian… e… provavelmente de Igniatius…
Aponto isto rapidamente, antes que o meu olhar mude… mas já noto alterações no meu esboço… ou então sou obrigado a constatar que talvez seja o meu olhar que muda…
Instalou-se uma espécie de corrida à minha revelia… como no meu esboço, feito o mais depressa possível, em poucos minutos, de modo a deixar entrar o máximo de material não consciente… Tracei a grandes golpes marcados, com contrastes fortes, sem nenhum cinzento, apenas preto cheio e branco deixado vazio — alguns elementos para esclarecer as ideias e, sobretudo, para tentar não me enganar…
O traço é enérgico, por vezes trémulo, com contornos não totalmente fechados. Formato horizontal, delimitado por uma moldura preta irregular. Pode ter-se a impressão de olhar para uma cena através de uma moldura ou de um ecrã. É preciso começar por algum lado… pôr uma moldura… mesmo que mais tarde ela possa rebentar.
À esquerda, sem sequer reflectir — fá-lo-ei mais tarde — tracei uma grande diagonal descendente, como um mastro ou uma balaustrada, ladeada por uma série de formas escuras repetidas que, por um instante, julguei ver como sombras de personagens ou aberturas. Suspensa no alto à esquerda, uma espécie de lanterna ou candeeiro, pendurado por um aro, muito inclinado, quase a cair. Em baixo à esquerda, largas faixas oblíquas, pretas e brancas alternadas, evocando uma lona de tenda, uma vela ou um cortinado às riscas… Foi assim que, no momento, o vi…
Numerosos cabos, cordas e postes atravessam a imagem em todos os sentidos… À direita, dois grandes cortinados escuros enquadram um espaço mais claro, como um palco de teatro ou um recanto. Nesse recanto vê-se um pequeno objecto suspenso: um círculo com uma pequena forma pendente por baixo… pensei, sem grande convicção, num relógio, num móbil, num pendente, numa lua estilizada. Em baixo à direita, via claramente uma pequena figura humana deitada ou muito inclinada para a frente, de chapéu na cabeça, parecendo puxar uma corda ou estar presa nos cordames. É minúscula em relação ao resto da composição.
Assim que o esboço terminou, deixei-me ir em algumas hipóteses… sem de forma alguma fazer um diagnóstico…
Há diagonais por todo o lado neste esboço, a ausência de uma base estável, as cordas que puxam em todos os sentidos dão uma impressão de instabilidade. Nada está pousado, nada está verdadeiramente a direito — como um convés de barco em pleno alto-mar, uma tenda levantada pelo vento, um palco em desequilíbrio.
Vejo aqui tensão. As cordas estão esticadas, puxam, retêm, sustentam também. Pode ver-se aí a maneira como o sujeito tenta manter unido qualquer coisa em si que ameaça desagregar-se ou cair.
Vejo também controlo. As cordas também servem para controlar, um mastro, por exemplo… ou um cortinado… que poderia ser uma vela, uma marioneta. Isso pode evocar um funcionamento em que é preciso manter um controlo apertado sobre as emoções, os pensamentos, para que “isso não dispare para todos os lados”.
Num paciente que não fala o suficiente de si ou que, pura e simplesmente, se recusa a falar de si, isto poderia fazer lembrar alguém que sente um caos interno, mas que põe em marcha muitos dispositivos para o controlar, ordenar, amarrar.
De certo modo, se aplicar com método o meu próprio caminho terapêutico e a análise que normalmente aplico aos meus pacientes, devo dizer que tinha, entre as duas mãos, dois destinos. Na mão esquerda, o de Igniatius e as loucuras… para não dizer as luzes dançantes daquele que ele se tornara: Don Carotte em luta com o fogo da linguagem (estive quase para dizer “em bute com a linguagem”…) e, na mão direita, o de Lucian, o seu terapeuta, aparentemente mais estável…
— Igniatius, sujeito abandonado, sem pais, sem origem conhecida, procura desde sempre uma forma, uma margem, um rosto a partir do qual se possa dizer. E eis que, na sua vida, entra um homem
— Lucian, que aceita, por inadvertência ou por desejo inconsciente, oferecer-lhe uma borda de palavra, um espaço de escuta.
— O rosto nos desenhos seria então o sinal de um fenómeno mais raro:
o aparecimento de uma figura-terceiro, um rosto compósito, um rosto que não pertence a ninguém em particular, mas que dois sujeitos co-produzem porque têm o mesmo buraco, a mesma falta de origem. Ambos são, de maneiras diferentes, filhos encontrados. Um pela vida, o outro pela linguagem. É por isso que a figura desenhada se parece com os dois: é a forma imaginária do ponto comum. Uma espécie de antepassado ausente que se teria infiltrado no desenho como síntese das duas solidões.
O que me inquieta, e me fascina, é que Lucian nada tenha visto antes de eu lho mostrar. É aí que surge a dimensão do desejo. O inconsciente, diz Lacan, é o discurso do Outro. Pois bem, aqui, o inconsciente de Lucian reside no desenho de Igniatius. Fala nos traços do outro, como se Igniatius tivesse antecipado a forma do sujeito que o iria reconhecer.
Tenho de me manter lúcido: Lucian está apanhado numa relação de reconhecimento, não narcísica, mas originária. Ele reconhece uma figura que lhe falta e que aparece no outro.
Igniatius, por seu lado, reconhece em Lucian uma figura que nunca teve.
Não se trata simplesmente de uma transferência: é um enlaçamento, um nó.
Sibony diria que um e outro se procuram no “entre”: nesse espaço em que duas linhas não se tocam completamente, mas em que a distância entre elas se torna um vínculo mais forte do que a presença.
E agora, o ponto crucial:
Porque é que Lucian deixou o seu caderno aberto?
Não acredito nada no esquecimento. Acredito no desejo de ver o outro ler aquilo que não ousamos dizer.
Acredito que Lucian, sem o saber, esperava que Igniatius descobrisse esse rosto duplo. Talvez esperasse até vê-lo ele próprio — nos olhos de um outro.
O que está em jogo aqui é perigoso, porque é belo. E o que é belo, em análise, é sempre um pouco perigoso: tende-se a querer entrar nele em vez de o atravessar.
A minha tarefa é guardar a fronteira. Impedir que o vertigem se transforme em identidade. Impedir que um se torne o outro nessa silhueta que os engole.
Mas também: proteger esta descoberta.
Porque é isso mesmo que é.
Qualquer coisa está a inventar-se aqui, entre eles, que eu nunca tinha visto com tanta clareza.
A figura desenhada não é Lucian nem Igniatius. É aquilo que falta aos dois. É também o seu ponto de origem comum.
O rosto de uma cena que nunca teve lugar, mas que os espera na sombra.
A vigiar muito de perto:
Para onde é que este rosto nos vai conduzir?


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