mercredi 19 novembre 2025

Um tremor por debaixo das palavras

 

 

 Don Carotte chegou naquela manhã com um passo incerto, como se caminhasse na névoa de um sonho que se recusava a dissipar-se.
Lucian, na sua poltrona, acolheu-o com aquela imobilidade calorosa que só uma longa disciplina da escuta torna possível.

Depois de algumas palavras de circunstância, que Don Carotte recebeu com um aceno distraído, Lucian, inclinando ligeiramente a cabeça enquanto rabiscava no caderno, disse com uma voz deliberadamente distraída, quase sonhadora:

— E essa lembrança, Igniatius…

O nome caiu como uma pedra lançada num lago imóvel.

Don Carotte endireitou-se bruscamente. O seu rosto, habitualmente nervoso e expressivo, tornou-se liso, quase petrificado.

— Porque… porque me chama assim? perguntou ele, com as sobrancelhas franzidas e um ar tão zangado quanto surpreendido.
— Assim? respondeu Lucian com uma doçura estudada. Oh… lamento, creio que o nome me escapou. Talvez porque o senhor próprio o pronunciou… parece-me… e várias vezes, se a memória não me falha.

Um silêncio, apenas dois segundos, mas suficiente para que Don Carotte se perguntasse se o esquecimento não era uma porta que ele próprio deixara entreaberta.

Lucian retomou, com a neutralidade delicada de quem toca numa matéria frágil:

— Eu queria voltar consigo àquela cena da tempestade. O senhor descrevia a luz que descia… aquela estranha sensação de que o dia se recolhia dentro de si para dar lugar a algo mais profundo. E depois a besta, a palha, aquele calor…

Don Carotte aquiesceu lentamente, quase contra vontade.

Lucian continuou, a voz mais lenta, quase meditativa:

— Pensei em algo, Igniatius — perdoe-me se o nome volta de novo, mas parece querer entrar na nossa conversa. Talvez… talvez aquilo que descrevia não fosse apenas uma tempestade do céu. Talvez fosse também uma tempestade de dentro. Uma espécie de… como dizer… diálogo entre forças mais antigas do que o senhor. Como se a terra falasse, o mar respondesse, e o céu, o mesmo céu que iluminou o flanco do burro, tentasse intervir nesse diálogo.

Don Carotte semicerrrou os olhos: algo naquelas palavras parecia-lhe ao mesmo tempo verdadeiro e proibido.

Vendo o efeito, Lucian afinou o discurso com uma suavidade que parecia uma carícia verbal:

— Sabe, às vezes, a memória, , sobretudo a da infância, desloca as cenas, transpõe as vozes. Atribui à natureza o que talvez pertencesse a… outra coisa. Aos adultos, talvez. Às figuras de autoridade. Às vozes que nos rodeavam antes de sabermos compreendê-las.

Pausa. Depois, num tom ligeiramente mais baixo:

— Eu perguntava-me apenas… se o senhor se lembra, não visualmente, não, talvez apenas um eco… do que diziam a terra e o mar, lá em cima, quando a tempestade rebentava. Ou, dito de outra forma: se se lembra do que diziam… pai e mãe.

Um sopro atravessou a sala.

Lucian, vendo Don Carotte imobilizar-se, acrescentou imediatamente, com uma inflexão mínima, um sorriso quase invisível:

— E talvez… do que dizia o céu.

Dissera “céu” de tal modo que também se podia ouvir ela

Ela que às vezes intervém, ilumina, corta ou apazigua… percebe o que quero dizer?

Don Carotte não respondeu de imediato.
Parecia escutar algo dentro de si, ou fora de si, um murmúrio de antes das palavras.

Depois disse, muito devagar:

— Eu… eu não ouvia bem. Era confuso. Parecia… sim… como vozes. Vozes que se procuravam ou chocavam. Subia, descia… às vezes era muito forte… em vagas…

As mãos tremiam-lhe ligeiramente, sem que se apercebesse.

— E eu… eu encostava-me ao burro. Ele… ele ouvia por mim. Eu não queria ouvir. Ou talvez… talvez não quisessem que eu ouvisse. Então escondia-me no calor dele, no cheiro dele… como se… como se ao colar-me a ele entrasse noutro mundo onde as vozes já não me alcançavam.

Lucian pousou o caderno nos joelhos, sem escrever.
Não queria quebrar o fio.

— E lembra-se, perguntou suavemente, se essas vozes… depois de subirem… acalmavam? Se, como nas tempestades, havia depois um momento de reconciliação… uma espécie de arco-íris?

Don Carotte estremeceu.

— Sim… é verdade… depois dos grandes estalidos… havia silêncio… e depois… outro som… mais baixo… mais… suave… gemidos e depois gritos. Eu não ousava olhar. Então ficava na palha. A palha cheirava… sabe… como um manto quente. E o burro… o burro não se movia. Guardava-me.

Ergueu a cabeça para Lucian, com um brilho de pavor no olhar.

— Acha que me engano… que confundi tudo?
— Acho, respondeu Lucian, que a sua memória tem uma maneira poética de o proteger. Conta-lhe as coisas vestindo-as de nuvens, de chuva, de luz e de animais. E acho também que agora… ela começa a falar-lhe mais claramente.

Don Carotte não disse nada.
Mas os seus olhos, estranhamente húmidos, pareciam sondar uma lembrança que talvez nunca tivesse podido — ou ousado — encarar de frente.

 

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