jeudi 4 décembre 2025

Abordagem

 
O circo abandonado vibrava então de uma alma.
A pista cobriu-se de um fogo sem corpo nem chama.
Já não se sabia bem se era a ruína que ardia
Ou se algum futuro surgia, enfim revelado.
Pois a Apocalipse, escuta bem esta palavra,
Não é cataclismo, nem fim, nem sepultura:
É o instante em que a noite, rasgando-se a si mesma,
Deixa ver uma luz proibida e recém-nascida.
Assim, neste deserto de tábuas e de ferro,
O passado erguia-se como um sol amargo.
As gargalhadas estilhaçadas, o cão, o burro fiel,
As ilhas a moverem as rochas no sal,
Os desenhos sem autor, os cadernos sem memória Tudo voltava a brilhar na sombra da História.
Mas essa própria luz anunciava o declínio:
Pois o circo apaga-se quando regressa o seu dia.



Lucian vai ver o seu supervisor, Félix, para lhe falar de um dos seus pacientes, Igniatius, que lhe coloca problemas. Até aqui, nada de anormal. Igniatius traz desenhos que afirma ter encontrado numa galeria. Esses desenhos, ao mesmo tempo claros e enigmáticos, contam sobretudo a história e as aventuras — situadas num arquipélago vulcânico, selvagem e desértico, submetido às forças da natureza — de um certo Don Cenoura (Dom Quixote) e Sangue Quente, o seu companheiro de jornada (Sancho Pança).
Neste arquipélago, as ilhas que o compõem mudam constantemente. Aparecem e desaparecem tal como o circo que se monta e desmonta todos os dias — excepto que, segundo os desenhos, o circo parece ser destruído (ou autodestruído — diferença importante) mais do que desmontado. Este circo parece ter sido o “lar” (no duplo sentido) de Don Cenoura quando era criança e vivia ali com o seu burro.
Os desenhos vêm anotados e assinados com uma escrita ilegível.
As conversas entre Lucian e Igniatius decorrem normalmente, até ao momento em que Lucian começa a suspeitar que os desenhos podem ter sido feitos por Igniatius, que os traria sob o pretexto de os ter encontrado.
Lucian não diz nada e deixa Igniatius falar, como deve ser, enquanto toma notas nos seus cadernos. Inspirado pelos desenhos trazidos por Igniatius, por vezes faz pequenas esboços que “poderiam ajudá-lo a compreender melhor quem os desenhou”.
O problema — aquele que parece estar na origem da presença de Lucian no consultório de Félix — é que Igniatius viu esses pequenos esboços e leu algumas das notas de Lucian, “porque ele as tinha deixado à vista na secretária na sua ausência e na presença de Igniatius”.
Félix ergueu imediatamente uma sobrancelha.
Bastou um simples olhar para que Igniatius reconhecesse — não só a escrita ilegível de Lucian, idêntica à assinatura ilegível dos desenhos — mas também o próprio estilo dos esboços no caderno.
Assim, Igniatius começou a suspeitar, não sem razão, que Lucian pudesse ser o autor dos desenhos que afirmara ter encontrado na galeria. Lucian nega, dizendo que fez os esboços para que, “como um actor que incorporou perfeitamente o papel que sabe de cor, fisicamente apanhado no mesmo movimento antes mesmo do pensamento ou da razão”, pudesse compreendê-los melhor.
— Pus-me no seu lugar, Igniatius… “na sua pele”, disse Lucian, tentando explicar por que razão também ele desenhava. Mas Igniatius não ficou convencido.
Félix, por sua vez, toma notas e desenha no seu caderno.
— Veja, Lucian, embora eu tenha dúvidas sobre o seu método… estou a tentar fazer como o senhor para compreender melhor o que tentou fazer com Igniatius…


— É um desdobramento singular aquilo que me conta… Está a obrigar-me a falar deste motivo que teremos de desbravar, não sem alguma vigilância crítica…
— Sabe, Félix… sinto que cheguei ao limite… ou melhor, aos limites…
— Aos limites de quê, Lucian?
— Essa é a questão!
— Aos limites do que posso dizer…
— Aos limites do que pode — ou do que quer — dizer, Lucian?
— Cheguei ao ponto de já não conseguir distinguir o poder do querer… Já não sei se sou eu quem segue Don Cenoura ou se é ele quem me segue…
— Lucian, o meu papel de supervisor parece ter de ser suspenso… Acho que será preciso reconsiderar a nossa relação, e que você terá de se aperceber — isto é, para ser preciso, prestar contas a si próprio — e contar-me em detalhe tudo aquilo que já sabe…


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