“O homem é uma corda esticada entre o animal e o Super-homem, uma corda sobre um abismo.”
Assim Falou Zaratustra
“Os múltiplos sóis, além de darem a cada protagonista a sua própria hora, são como re-apresentações da mesma forma.
Não é um mundo organizado em torno do Um… da unidade.
Também não é um mundo completamente estilhaçado em mil fragmentos.
Essas esferas vermelhas, as volutas ondulantes, as formas incandescentes em torno do dançarino evocam um fogo omnipresente: um fogo cósmico, interior, criador.
Esse fogo não destrói para destruir: é o fogo dionisíaco que purifica, transforma e obriga a inventar.
Brincar com o fogo é aceitar que a criação implica perigo, uma queimadura, uma perda de si.
É preferir uma existência viva e arriscada a uma tibieza sem intensidade.
O dançarino atravessa essa arena em chamas não para dominá-la, mas para nela se afinar — como quem afina um instrumento a uma tonalidade nova.”
“— E estas cordas, Félix… o que diz delas?”
“— Ligando o passado e o futuro, a corda vibra sob os passos do dançarino…”
“Sim… ele dança… sobre o fio e brinca com o fogo…
O burro representa aquilo que a sociedade desvaloriza, aquilo que ela julga inferior, quase ridículo.
Este dançarino dança — e não em qualquer lugar — dança à beira do vazio e mostra que não se contenta com a submissão.
Ele liberta-se, revolta-se e transforma o seu estatuto de burro em potência criadora…
enquanto noutra corda, idêntica em tudo, estão pousados os papagaios… de que o senhor não quer falar…”
Félix continua como se nada tivesse ouvido.
“— Olhe para o funâmbulo, Félix. Ele faz-me pensar na filosofia de Nietzsche.”
“— Veja, Lucian, estas são as vibrações do presente… que brincam com as forças do caos.
É isso que lhe permite dançar em vez de cair.
A transformação começa precisamente quando se assume aquilo que os outros condenam.
O candidato ao Super-homem não tem o rosto glorioso esperado, mas a máscara do desprezo.”
“— Ainda é aceitável, hoje, falar do Super-homem?”
“— Claro que ‘Super-homem’ evoca de imediato fantasias políticas ou biológicas…
mas a palavra alemã não significa ‘melhor do que’, uma superioridade hierárquica.
Significa sobre, além (über), no sentido de travessia, de ultrapassagem.
O Übermensch é o horizonte do auto-superamento, uma figura de transformação, de criação de novos valores.
Não é um ser superior aos outros: é uma nova relação consigo próprio.
O nosso dançarino-burro não é um Super-homem que domina os outros.
É um ser vulnerável, ridicularizado, instável, mas que dança apesar de tudo;
ele ouve o que outros não ouvem e caminha sobre um fio entre o caos e a luz.”
Félix faz uma pausa e depois prossegue:
“— E essas longas orelhas, de que se ri, tornam-se aqui símbolo essencial.
Indicam que este dançarino ouve — nos dois sentidos:
ouvir como perceber, captar as vibrações do mundo,
e ouvir como compreender, apreender o que os outros ignoram.
Aquele que chamam de ‘besta’ é talvez quem escuta mais longe.
Ele percebe o estremecer da corda, o sopro das aves, o murmúrio do livro aberto, os bramidos do caos ao redor.”
“— E o papel do terapeuta nisso tudo?”
O supervisor volta-se para Lucian:
“— Você, em tudo isso, surge como um possível terceiro termo.
Um terceiro que não corta, que não reduz tudo a ‘uma única verdade’,
mas que sustenta a coexistência de duplos, de contradições, de tempos fragmentados.
Se interpretar demasiado depressa, arrisca quebrar essa construção frágil — forçando o dois a voltar a ser um.
Se, ao contrário, puder reconhecer a coerência íntima deste mundo —
um livro em chamas, um burro que dança, uma sombra que escreve,
um funâmbulo vigiado por dois papagaios,
auxiliares que correm, ondas que regressam —
então oferece ao paciente a possibilidade, um dia,
de fazer surgir um terceiro elemento:
uma palavra, uma frase, uma história.
Não tem de ‘compreender’ no lugar dele.
Tem de sustentar a cena, refletindo-a — como pensamento e como espelho —
e deixar que o tempo trabalhe para que a sua sombra-escrita, ali na página,
se torne um dia legível… para ele. Talvez.”
Depois acrescenta suavemente:
“— Em resumo, os desenhos que ele lhe trouxe, assim como este — certamente da mesma mão — não são nada ingénuos.
São uma topografia do seu mundo interno.
O facto de ele lhos ter confiado já é um grande movimento do funâmbulo em sua direção.”
“— Diga-me, Lucian… não será Igniatius nesta imagem?”
“— Surpreendentemente… sim… é ele!
Mas o que faz ele nessa corda bamba…?
E já está mais do que na hora de me falar desses papagaios!”

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