samedi 6 décembre 2025

O pequeno homem de cabeça de burro


Enquanto Lucian, muito surpreendido e cheio de dúvidas pelo facto de Félix ter trazido um desenho que diz ter ido buscar à galeria onde Igniatius supostamente encontrou aqueles que leva a Lucian, permanece calado, sem saber bem o que dizer nem o que pensar.
À primeira vista, segundo Lucian, esse desenho nada teria a ver com Igniatius.
Ele ouve Félix repetir que “o que tinham trocado na última sessão” o tinha profundamente… como dizer… perturbado, e como tentara, tal como Lucian e Igniatius, representar a situação em que estavam… e ainda estão… de outra forma que não apenas por palavras.

— Vai ver… É apenas uma tentativa… pouco ortodoxa, é verdade, mas às vezes funciona, Lucian. Gostaria de conhecer o resto da minha análise? Verá que tem profundamente a ver com o seu… enfim… com o nosso problema. Perdoe-me, mais uma vez, chamá-lo assim.

Lucian não responde, mas parece consentir, e Félix não espera. Volta a colocar o desenho diante dos olhos de Lucian, que olha para outro lado… convencido de já o conhecer.

— Veja, Lucian, o pequeno homem dançante de cabeça de burro e a sua sombra-escrita!


Lucian vira ligeiramente a cabeça, hesita longamente e decide-se:
— Não vejo…
— Concentre-se.
— Agora vejo… mas ele não está a dançar.
— Olhe outra vez, Lucian.
— Ah! Agora sim, vejo duas figuras de cabeça de burro!
— Por agora, deixe de lado o cenário e foque o olhar naquele que dança…


— Vejo-o, mas não vejo sombra de escrita.
— Espere que a vaga passe.

O supervisor demora-se e aponta com o dedo, quase com ternura, o detalhe em baixo à direita.
— Aqui, na margem do livro, uma figurinha que acena… aquela que viu primeiro… e ali, o seu duplo, minúsculo, com cabeça de burro e corpo humano. Mas repare como ele dança, e como essa dança projecta uma sombra negra sobre a página em branco, como uma escrita em perpétuo movimento, ilegível fora do presente.

— O que representaria esse homem de cabeça de burro, na sua opinião?

— Veja, Lucian… o burro, simbolicamente, é muita coisa… Num primeiro nível, pode ser o símbolo de quem não sabe, mas quer aprender. Mas noutros aspectos, é aquele que se alimenta de pouco, até de coisas duras, espinhosas… É aquele que suporta cargas pesadas sem que o “cérebro” interfira demasiado. Está presente, testemunha da Natividade. É também, perdoe a incongruência, pela sua cauda comprida, ligado à sexualidade primitiva, ao início da vida, a uma fecundidade bruta… e, por fim, é aquele que, com as suas grandes orelhas, sabe ouvir.

— Mas porquê esta chama?
— Já falámos disso ontem, lembra-se? A chama é também um caminho. Repare como este pequeno ser dança ao ritmo dessa chama, na borda do livro que arde. O homem de cabeça de burro segue, dançando, o caminho que a chama simboliza. Os movimentos do dançarino agem sobre a chama. Assim, o caminho imprevisível, longe de estar fixo, modifica-se com a sua acção. Torna-se o seu caminho. E, sobretudo, a sua sombra projecta-se sobre a página. A sombra não desenha uma silhueta nítida; produz sinais negros, como uma escrita que muda constantemente. É uma escrita ilegível, instável, trémula.

— Pode ver-se aí uma espécie de proto-escrita… como a de Igniatius…
— É exactamente isso, Lucian. Alguma coisa se imprime, deixa um rasto, mas ainda não pertence ao registo de uma linguagem partilhada.

— Continue, Félix, peço-lhe.
— E aqui a lógica do duplo torna-se muito interessante. Reparou em como, nesta imagem, a noção de duplo se instalou? Temos, por um lado, o burro que dança: pura pulsão, pura motricidade, pura resistência; e, por outro, o seu duplo-sombra, que escreve um texto que ninguém consegue, ainda, decifrar.

— Poderíamos dizer: o id é inscrição. O corpo, o rasto e o mutismo já são uma forma de escrita.
— É muito belo, Lucian, muito forte. Mas veja: ainda estamos longe de ter explorado toda a imagem.



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