Félix senta-se, coloca uma imagem entre ele e Lucian, olha-a longamente e depois diz, com calma:
— O que vê, Lucian?
— Vejo dois grandes papagaios que dominam o centro da imagem. Ocupam imenso espaço, quase como estátuas ou divindades. À sua volta e diante deles vejo uma multidão de pequenas figuras mascaradas, muito estilizadas, com movimentos exagerados (braços erguidos, corpos inclinados, em desequilíbrio). No fundo, ao centro: um grande livro aberto. Desse livro parece sair uma espécie de rampa/ramo/caminho tortuoso que atravessa a imagem na diagonal. O cenário é feito de formas orgânicas, em volutas, como plantas, ondas ou raízes. Vejo também vários grandes discos vermelhos que podem sugerir sóis ou projetores.
— Se estiver de acordo, começo simplesmente por dizer o que eu vejo.
Lucian, surpreendido, pergunta de onde vem a imagem. Félix responde:
— O que trocámos na nossa última sessão perturbou-me profundamente… Tentei, como Igniatius e como o senhor, representar a situação em algo que não fossem palavras. É apenas uma tentativa… uma daquelas tentativas que nos dizem aquilo que queremos ouvir… Eu sei, não é ortodoxo, mas às vezes resulta. Quer saber o que deduzi? Verá que tem tudo a ver com o seu… enfim… com o nosso problema. Perdoe-me chamá-lo assim.
Lucian não sabe o que pensar.
— Como se nada soubesse do seu paciente, nada dos autores que ele convoca—Kafka, Ouaknin ou quem quer que seja—decidi agir. Fui à galeria de que me falou… e mostro-lhe o que lá encontrei, aquilo que temos agora diante dos olhos.
— Aí, na parte inferior da imagem, um livro — grande — está aberto. Mas não repousa sobre uma mesa, nem é segurado por mãos. Flutua sobre algo que se assemelha a ondas enroladas.
Já aí algo se joga: o livro, normalmente símbolo do saber estável, da Lei, do texto fundador, aqui não tem suporte sólido. Deriva. Está prestes a ser levado, submerso.
As ondas não são simples ondas. Têm uma forma quase espiralada: aparecem, recolhem-se, recompõem-se enquanto se enrolam sobre si. Há um movimento cíclico, como afetos ou pensamentos que regressam sem cessar em formas alteradas. E, detalhe importante: junto de cada onda, como se atada a ela, uma pequena chama. Água e fogo lado a lado, sem se destruírem. Contraditórios, mas coexistentes. Já escuta o que isto pode dizer do psiquismo, não é? Pulsões opostas que se neutralizam e relançam.
Lucian acena, atento.
— E depois, acima de tudo, desse livro ergue-se uma grande chama.
Mas, se seguimos essa chama, ela não é apenas fogo.
É também um caminho, uma trajetória, uma rampa onde personagens se apoiam. O livro não contém apenas texto; produz um caminho — mas um caminho ardente, instável, que se torce, que pode extinguir-se a qualquer momento… e que, ainda assim, ilumina a cena.
— Se penso em Ouaknin — conhece — e no seu “livro queimado”, diria: aqui, ler, pensar, recordar é queimar o próprio suporte. A chama alimenta-se do livro, fá-lo desaparecer, e obriga a uma nova leitura a cada vez. Nada é fixo. Nada é definitivamente sabido.
Lucian escuta fascinado.
— Volto às ondas com as suas chamas gémeas.
Cada onda tem a sua pequena chama. A água forma-se, desaparece, regressa. A chama também. Isto parece-me a imagem de um Id muito vivo, um fundo pulsional que não se fixa, que não se deixa aprisionar. Não é um Id mortífero. É um Id rítmico, arcaico… mas vivo. E o livro, pousado sobre isso, tem de lidar com tal instabilidade. Tal como Igniatius, que tenta manter um texto interior, um relato, sobre um mar de excitações que sobem, caem, regressam quase sem fim.
Félix aponta mais acima.
— Mais alto: uma corda. Esticada entre duas extremidades invisíveis. O passado de um lado, o futuro do outro, se quiser. De qualquer modo, dois pontos fora do quadro… porque quadro há. O paciente não desenha esse passado nem esse futuro. Ele está no presente.
— Sobre essa corda, dois grandes papagaios. Não um — dois. Sempre a lógica do duplo. Encaram-se, ou quase. O papagaio é aquele que repete. Repete um discurso que não é o seu. Pode ouvir-se nele o Superego: frases aprendidas, injunções, julgamentos vindos de fora mas que acabam por habitar o dentro.
— Aqui, os papagaios são enormes, desproporcionados. Dominam a cena e pousam sobre o fio frágil que serve de passagem. Assim, para o sujeito avançar no seu fio, está exposto ao perigo do olhar e da repetição. E como são dois, pode pensar-se: este Superego não é unificado. É duplicado, talvez contraditório, talvez redundante. Duas vozes, dois juízes, dois ecos.
— Diga-me, Félix… o que ou quem representam estes papagaios?
— Tudo a seu tempo, Lucian…
Félix aponta a figura sobre a corda.
— Ali, à direita dos papagaios, uma pequena figura avança em equilíbrio. Tem algo de Pinóquio: um corpo de fantoche, quase de madeira, ainda não totalmente humano.
— É uma bela metáfora do Eu: um Eu em construção, não totalmente encarnado, não totalmente seguro de existir. Um Eu que tenta manter-se entre dois extremos invisíveis, sob o olhar destes dois papagaios-superegos. Pinóquio é também aquele que mente, que desempenha um papel, que quer tornar-se um “menino de verdade”. Pode imaginar-se que o seu paciente também esteja preso entre a necessidade de se mostrar e o medo de ser apanhado em falsidade, de ser “postiço”. Caminhar no fio é existir. Cair talvez fosse um colapso psíquico.
Félix segue o olhar para baixo.
— Acima desta chama-caminho — talvez até brincando com ela — duas personagens de smoking, sem casaco. Penso nelas como os ajudantes de K. São figuras do Eu auxiliar: sempre em movimento, sempre ocupadas, muitas vezes de modo absurdo. Agitam-se, mas sem que se compreenda bem porquê. Psiquicamente, parecem mecanismos de defesa: trabalham, correm, fazem malabarismos, tentam organizar… mas sem verdadeira eficácia, porque a cena é demasiado complexa. E são duas, de novo. Assim, de novo, um Eu que não se apoia num único eixo, mas se multiplica para conseguir manter-se. Como se um só Eu não bastasse.*
Félix faz silêncio. Lucian parece absorto.
— Está a ouvir-me, Lucian?
— Sigo-o, Félix… mas isso não significa que concorde com tudo…
— Estamos longe de terminar com esta imagem… continuaremos amanhã, Lucian…
* Franz Kafka, O Castelo

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