mercredi 10 décembre 2025

Vazio

 

Sang Chaud poderia ser, à sua maneira, o irmão de Don Carotte. Ambos rejeitam o cliché e a evidência.
Um não vive simplesmente aqui, ele revive, poderíamos dizer. O outro só fala ao desprender-se da sua própria voz. Instalam-se num espaço de retraimento, de latência, de vigília, onde algo como uma subjetividade sem imagem pode finalmente surgir. É isso que chamo uma presença verdadeira. Uma presença frágil, vacilante, mas irredutível.
 
 
Há já muitos dias que Don Carotte não aparece no consultório de Lucian, ocupado como está, com Félix, pela análise das imagens que Igniatius lhe traz. Podemos colocar mil perguntas sobre este facto…
Podemos também perguntar: por que razão Igniatius abandonou Sang Chaud justamente no momento em que Don Carotte se encontrava diante do Leviatã? Mas antes disso, o leitor poderia indagar-se se Sang Chaud consegue ultrapassar o papel clássico do cómico secundário.
Poderia ele, pela força da vontade, impor-se como figura essencial da reflexão romanesca na história de Don Carotte? Para responder, poderíamos mostrar primeiro que Sang Chaud desempenha uma função simultaneamente cómica e realista que equilibra a loucura de Don Carotte — o cavaleiro sem montada na sombra de Igniatius, escritor do sétimo dia. Veríamos depois que ele pode, dependendo das circunstâncias, tornar-se um verdadeiro contraponto filosófico a Don Carotte, trazendo por vezes uma sabedoria… ou uma loucura paradoxal. Por fim, tentaremos mostrar que ele evolui ao ponto de se tornar uma personagem autónoma, reveladora de um segredo, esse tremor interior que não vem da digestão, mas sim de um abalo mais profundo… uma insurreição íntima.
 
 
 Don Carotte procura entre as páginas o amigo que o livro perdeu…

– Há algo que não bate certo. O mundo das palavras, habitualmente tão falador, respira ao contrário.
Uma das rodas do destino range. Falta uma sombra ao sol.

Don Carotte, sozinho, cavalga as palavras, ereto, orgulhoso, visionário, mas o texto à sua volta, desequilibrado e coxo, arrasta-se de vírgula em vírgula… em mau estado.
Ele fala. Exclama. Pregoa ao horizonte.
Nenhuma voz terna, grave, familiar lhe responde.
Nenhum provérbio rola pelo ar como um barril barulhento.

Então, num murmúrio que não se escreve em lado nenhum, Don Carotte pergunta:

– Onde está o Sang Chaud?
Ninguém responde.
Igniatius encolhe-se, estranhamente mudo.
Don Carotte interroga o céu e arrasta o casco.
Lucian, surpreendido por ser consultado, detém-se de repente.

Don Carotte perscruta os taludes, o oceano, a praia, a areia, o pó, as nuvens.
Chama para o vazio do texto, para o silêncio de uma página branca:

– Sang Chaud! Meu amigo! Meu eco! Meu irmão de caminho! Onde vos escondeis?

Um vasto silêncio pousa, como um lençol sobre a morte.
Então Don Carotte, com a gravidade de um profeta perdido, declara:

– Falta alguém neste mundo… e este vazio enche-me.

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