dimanche 30 novembre 2025

Uma ordem invisível

 

Um motivo avança, claro como uma pergunta.
Outro segue-o, o seu espelho deformado.
Entre ambos, o mundo tece-se: linhas que se ignoram e, no entanto, concordam. Depois tudo se ergue,  espiral de ecos, e desaba de repente, deixando no ar o sinal breve de uma ordem invisível.


Surgida do tumulto oceânico como um pensamento esquecido pelo mundo, ela repousa, altiva e nua, sob o céu mutável. O vento reina ali como senhor, mordendo as pedras, açoitando os cumes, semeando queixas nos sulcos das falésias. Em redor, o infinito marinho: uma ondulação sem fim, sem margem, sem fundo, onde os dias se confundem com as noites e os séculos com os sonhos. Nesta charneca batida pelo vento, o silêncio está povoado. Um burro, vigia pacífico, observa ao longe. Ao seu lado, um cão atento ergue as orelhas para o horizonte, e entre ambos está uma criança.
Sentinelas estranhas, como uma memória distante.
Juntos, dominam um promontório; o seu circo improvisado estende-se a seus pés, feito de tábuas naufragadas, lonas rasgadas, objectos salvos que parecem arrancados ao ventre de um sonho despedaçado. O vento assobia pelas cordas como por harpas quebradas.
Toca em tudo: mastros torcidos, velas pendentes, ossadas de histórias.
Por vezes, entre rajadas, sobem vozes,  nem grito de ave, nem eco humano. Outra coisa. Sopros articulados. Palavras vindas de algures, trazidas pelas grandes asas do ar salgado.
Vozes que não parecem nascer aqui, mas de um mundo paralelo, talvez igualmente perdido.
Como se, para além das ondas, o autor, a personagem e o leitor se tivessem extraviado, murmurando as suas dúvidas ao largo.
Um teatro sem cortina, sem público, sem fim —
e no entanto, onde cada ser, ou cada coisa — se é que há diferença — procura o seu lugar na memória do vento.
Igniatius cala-se.
O sopro da memória alargara-lhe o olhar,
como se a sala do consultório se tivesse aberto sobre as ilhas móveis da sua infância.
Lucian, sentado na poltrona, não se mexe.
Respira discretamente.
— E era sempre… a mesma ilha? pergunta ele suavemente.
Uma pergunta neutra, simples, como dar corda a um velho relógio, mas carregada de uma estranha acuidade, como se Lucian já soubesse que a resposta seria não.
Igniatius abanou a cabeça.
— Não. Nunca a mesma. Mudavam. O arquipélago movia-se como um animal debaixo da pele. Um dia a ilha era redonda, quase suave; no dia seguinte abria-se em duas, como uma boca de pedra pronta a engolir-nos. Lembro-me de uma noite em que todo o chão vibrava, Lucian — tudo… até a areia tremia. E o circo tinha de recolher, desmontar-se, fugir, como uma tenda apanhada na respiração de um gigante.
Lucian sorriu, um sorriso quase imperceptível,
mas suficiente para fazer tremer Igniatius.
Pois nesse sorriso havia algo… insinuado.
— Sabia? pergunta Igniatius.
— Não, responde Lucian. Estou apenas a ouvir.
Mas a resposta, demasiado lisa, aumenta o desconforto de Igniatius.
Ele continua, quase contra a sua vontade:
— As ilhas mudavam de forma. Os homens também. Só o burro… ficava sempre igual. Sempre. Não tinha medo do fogo, nem dos abalos, nem das partidas apressadas. Deitava-se junto a mim, ou eu junto a ele… Ouvíamos tudo, mas de outra maneira, como se cada palha fosse uma flauta, e todas juntas formassem um órgão que abafava os ruídos do mundo e do céu.
Lucian acena lentamente e murmura:
— Como um refúgio vivo.
Igniatius estremece.
— Sim! Isso mesmo! Era exactamente isso que eu ia dizer… Você… como sabia que eu ia dizer isso?
Lucian permanece imóvel.
— Não sabia. Talvez adivinhasse. A sua história fala-me… profundamente.
A frase vibra no ar.
E algo na postura ambígua de Lucian provoca em Igniatius um arrepio gelado.
— “Adivinhar”… repete ele, frágil. É curioso. Porque às vezes sinto que adivinha mais do que isso, Lucian. Como se…
Procura as palavras.
— Como se já conhecesse estas ilhas.
— As suas, responde Lucian suavemente. São as suas ilhas, Igniatius.
Mas Igniatius abana a cabeça, agora quase violentamente.
— Talvez sejam também as suas.
Lucian não responde.
Então Igniatius retoma, com uma voz lenta, quase cantada:
— Quando falo, você nunca se surpreende. Termina as minhas frases. Antecipas as minhas memórias antes de eu as alcançar. Parece… preceder-me.
Olha Lucian como quem observa alguém de pé numa fronteira invisível.
— Lucian… tem a certeza de que nunca me ouviu contar isto? Noutro lugar? Antes? Ou… de outra maneira?
Um relâmpago discreto atravessa o rosto de Lucian.
Mas Igniatius vê-o.
— É isso, não é? murmura. Você não se surpreende porque… porque me conhece. Talvez me conheça… há muito tempo… e talvez — se é possível — antes da minha memória.
Lucian endireita-se ligeiramente.
— Igniatius… respire fundo e continuemos. Deixe as memórias vir. Estou aqui para as receber…
Mas a frase soa como uma resposta demasiado treinada.
Igniatius estreita os olhos, cruza os braços.
— Está aqui… sim. Desde quando?
O silêncio cai — denso, luminoso, vertiginoso.
Os mares da memória flutuam à volta deles,
mas outra pergunta — terrível e magnífica — nasce em Igniatius:
E se Lucian não estivesse apenas a ouvi-lo…
mas — de certo modo — a chamá-lo?
E se o circo, o burro, as ilhas, a criança…
tivessem começado a existir porque Lucian estava ali para os receber?
A sessão continua “como se nada fosse”, exteriormente.
Mas no fundo, algo abre-se, inverte-se, revela-se.
Um ponto onde tudo converge.
E mal parece que memória e realidade formam um todo…
esse todo começa a desfazer-se.


An invisible order

 

A pattern advances, clear as a question. Another follows, its distorted mirror. Between them the world is woven: lines that ignore one another and yet accord. Then everything rise, spiral of echoes, and suddenly falls again, leaving in the air the brief sign of an invisible order.


Risen from the oceanic tumult like a thought forgotten by the world, she lies, proud and bare, beneath the shifting sky. The wind reigns there as master, biting the stones, whipping the crests, scattering its laments through the hollows of the cliffs.
Around her, the infinite sea: a swell without end, without edge, without bottom, where days blend with nights and centuries with dreams.
On this wind-beaten moor, the silence is inhabited.
A donkey, peaceful watchman, observes from afar.
Beside him, a vigilant dog pricks its ears toward the horizon, and between them stands a child.
Strange sentinels, like a distant memory.
Together, they dominate a promontory, their improvised circus stretching at their feet—
made of wrecked planks, torn canvases, salvaged objects that seem torn from the belly of a shattered dream.
The wind whistles through the ropes like through broken harps.
It plays with everything: twisted masts, hanging sails, the bare bones of stories.
At times, between gusts, voices rise, neither bird cry nor human echo. Something else. Articulated breaths.
Words from elsewhere, carried by the great wings of the salty air. Voices that seem not to be born here but from a parallel world, perhaps just as lost.
As if, beyond the waves, the author, the character, and the reader had strayed, murmuring their doubts while speaking to the open sea.
A theatre without curtain, without audience, without end—
yet where each being, or each thing, if there is a difference, seeks its place in the memory of the wind.
Igniatius falls silent.
The breath of memory had widened his gaze,
as if the office room had opened onto the shifting islands of his childhood.
Lucian, seated in his armchair, does not move.
He draws a discreet breath.
— And it was always… the same island? he asks softly.
A neutral question, simple, like winding an ancient clock—
yet carrying a strange acuity,
as though Lucian already knew the answer would be no.
Igniatius shook his head.
— No. Never the same. They changed. The archipelago moved like an animal under its skin. One day the island was round, almost gentle; the next it opened in two, like a mouth of stone ready to swallow us. I remember a night when the whole ground trembled, Lucian—everything… even the sand trembled. And the circus had to fold, dismantle itself, flee, like a tent caught in the breathing of a giant.
Lucian smiled—a barely perceptible smile—
but one that made Igniatius shiver.
For in that smile lay something… suggested.
— You knew? asked Igniatius.
— No, Lucian answered. I’m listening to you.
But the answer, too smooth, deepened Igniatius’s unease.
He continued, almost despite himself, searching in Lucian’s voice for an impossible anchoring.
— The islands changed shape. And the men too. Only the donkey… always remained the same. Always. He wasn’t afraid of the fire, nor of the tremors, nor of the sudden departures. He lay down beside me, or I lay beside him… We heard everything—but differently—as if every strand of straw were a flute, and all those flutes formed an organ that drowned out the noises of the world and of the sky.
Lucian nodded slowly and murmured:
— Like a living refuge.
Igniatius started.
— Yes! Exactly! That’s exactly what I was going to say… You… how did you know I was going to say that?
Lucian remained still.
— I didn’t know. I simply guessed. Your story speaks to me… deeply.
This phrase, spoken almost involuntarily, vibrated in the air—
and something in Lucian’s ambiguous attitude sent a cold wave up Igniatius’s spine.
— “You guess”… he repeated, fragile. It’s strange. Because sometimes I feel that you guess more than that, Lucian. As if…
He searched for his words.
— As if you already knew these islands.
— Yours, Lucian answered softly. They are your islands, Igniatius.
But Igniatius shook his head sharply.
— They may be yours too.
Lucian said nothing.
Then Igniatius resumed, voice slow, almost sung:
— When I speak, you’re never surprised. You finish my sentences. You anticipate my memories before I recover them. You seem… to precede me.
He looked at Lucian as one looks at someone standing on an invisible border.
— Lucian… are you sure you’ve never heard me tell all this before? Elsewhere? Earlier? Or… differently?
A brief flicker passed over Lucian’s face—
as quick as a reflection of light.
But Igniatius saw it.
— That’s it, isn’t it? he murmured. You’re not surprised because… because you know me. You may know me… from long ago… and maybe—even if this is possible—before my memory.
Lucian straightened slightly.
— Igniatius… breathe deeply, and let us simply continue. Let the memories come. I’m here to receive them…
But this answer—gentle, yes—echoed like a sentence too well learned.
Igniatius narrowed his eyes, crossed his arms.
— You are here… yes. Since when?
A silence fell—dense, luminous, vertiginous.
The sea-memories of Igniatius floated around them,
but another question, terrible and magnificent, began to rise within him:
What if he was not only being heard by Lucian…
but—how to say—called by him?
And if the circus, the donkey, the islands, the child…
had begun to exist because Lucian was there to receive them?
The session continued outwardly “as if nothing were happening”—
but underneath, something opened and inverted.
A point where everything met.
And no sooner did memory and reality seem to form a whole
than that whole began to blur.


Un ordre invisible


Un motif s’avance, clair comme une question.
Un autre le suit, son miroir déformé. Entre eux le monde se tisse: lignes qui s’ignorent et pourtant s’accordent. Puis tout s’élève, spirale d’échos, et retombe soudain, laissant dans l’air le signe bref d’un ordre invisible.

Surgie du tumulte océanique comme une pensée oubliée du monde, elle repose, fière et nue, sous le ciel changeant. Le vent y règne en maître, mordant les pierres, fouettant les cimes, égrenant ses plaintes dans les creux des falaises. Autour, l’infini marin: une houle sans fin, sans bord, sans fond, où les jours se confondent aux nuits, et les siècles aux songes. Sur cette lande battue, le silence est peuplé. Un âne, paisible veilleur, observe de loin. À ses côtés, un chien attentif dresse les oreilles vers l’horizon, et entre eux se tient un enfant. Étranges sentinelles, comme un lointain souvenir. Ensemble, ils dominent un promontoire, leur cirque improvisé s’étendant à leurs pieds, fait de planches naufragées, de toiles lacérées, d’objets rescapés qu’on dirait arrachés au ventre d’un rêve fracassé.

Le vent siffle dans les cordages, comme dans des harpes brisées. Il joue de tout : des mâts tordus, des voiles pendantes, des ossements d’histoires. Par moments, entre deux bourrasques, montent des voix, ni cris d’oiseaux, ni échos humains. Autre chose. Des souffles articulés. Des mots venus d’ailleurs, portés par les grandes ailes de l’air salin.
Des voix qui ne semblent pas naître ici, mais d’un monde parallèle, peut-être tout aussi égaré. Comme si, au-delà des vagues, l’auteur, le personnage, et le lecteur s’étaient perdus, murmurant leurs doutes en s’adressant au large.
Un théâtre sans rideau, sans public, sans fin, mais où pourtant chacun, être ou chose, à considérer qu’il y ait une différence, cherche sa place dans la mémoire du vent.
Igniatius se tait un instant.
Le souffle du souvenir avait élargi son regard, comme si la pièce du cabinet s’était ouverte sur les anciennes îles mouvantes de son enfance.
Lucian, assis dans son fauteuil, ne bouge pas.
Il prend une inspiration discrète.
Et c’était toujours… la même île? demanda-t-il doucement.
Une question neutre, simple, comme on remonte une pendule ancienne, mais qui portait une étrange acuité, comme si Lucian savait déjà que la réponse serait non.
Igniatius hocha la tête.
Non. Jamais la même. Elles changeaient. L’archipel bougeait comme un animal sous sa peau. Un jour l’île était ronde, presque douce ; le lendemain elle s’ouvrait en deux, comme une bouche de pierre prête à nous avaler.  Je me souviens d’une nuit où tout le sol vibrait, Lucian, tout… même le sable vibrait. Et le cirque devait se replier, se démonter, fuir, comme une tente prise dans la respiration d’un géant.
 
Lucian sourit, un sourire à peine perceptible, mais un sourire qui fait frémir Igniatius.
Car il y a là, dans ce sourire, quelque chose de… sous-entendu.
Vous saviez? demanda Igniatius.
Non, répond Lucian. Je vous écoute.
Mais cette réponse, trop lisse, augmente le trouble d’Igniatius.
Il reprend malgré lui, cherchant dans la voix de Lucian un ancrage impossible.
Les îles changeaient de forme. Les hommes aussi. L’âne seul… restait toujours le même. Toujours. Il n’avait pas peur du feu, ni des secousses, ni des départs précipités. Il se couchait près de moi, ou je me couchais près de lui… On entendait tout, mais on entendait autrement, comme si chaque brin de paille était une flûte, et que toutes ces flûtes formaient un orgue qui couvrait les bruits du monde et du ciel.
Lucian acquiesce d’un mouvement de tête… lentement… et dit, à mi-voix :
Comme un refuge vivant.
Igniatius sursauta.
Oui! C’est cela! C’est exactement ce que j’allais dire… Vous… comment saviez-vous que j’allais dire cela?
Lucian resta immobile.
Je ne savais pas. Je devinais peut-être. Votre histoire me parle… profondément.
Cette phrase, lancée presque malgré lui, fait vibrer quelque chose dans l’air et l’attitude ambiguë de Lucian fait qu’Igniatius sent une onde glacée remonter le long de sa colonne vertébrale.
“Vous devinez”… dit-il, reprenant les mots de Lucian avec un ton étrangement fragile. C’est drôle. Parce que parfois, j’ai l’impression que vous devinez plus que cela, Lucian. Comme si…
Il s’interrompt, cherche ses mots.
Comme si vous connaissiez déjà ces îles.
Les vôtres, répond Lucian doucement. Ce sont vos îles, Igniatius.
Mais Igniatius secoue fortement la tête, presque violemment.
Ce sont peut-être les vôtres aussi.
Lucian ne répond pas.
Alors Igniatius poursuit, sa voix devenue lente, presque chantée:
Quand je parle, vous n’êtes pas surpris. Vous terminez mes phrases. Vous anticipez mes souvenirs avant que je les retrouve. Vous semblez… me précéder.
Il regarde Lucian comme on regarde quelqu’un qui se tient sur une frontière invisible.
Lucian… êtes-vous sûr que vous ne m’avez pas déjà entendu raconter tout cela? Ailleurs? Avant? Ou autrement?
 Un très rapide frémissement passe sur le visage de Lucian, discret et vif comme un reflet de lumière.
Mais Igniatius le voit.
C’est cela, n’est-ce pas ? murmure-t-il. Vous n’êtes pas surpris parce que… parce que vous me connaissez. Vous me connaissez peut-être…  depuis longtemps…et même, si cela se peut… avant ma mémoire.
Lucian se redresse, très légèrement.
Igniatius… respirez profondément et continuons simplement. Laissez les souvenirs venir. Je suis là pour les accueillir…
Mais cette réponse, si douce, résonne comme une phrase trop bien apprise.
Igniatius plisse les yeux, se redresse et croise les bras sur sa poitrine.
Vous êtes là… Oui. Depuis quand?
 Un silence se posa, dense, lumineux, vertigineux.
Les souvenirs marins d’Igniatius flottent autour d’eux,
mais une autre question, une question terrible, magnifique, impossible, commence à se former dans son esprit:
Et s’il n’était pas seulement écouté par Lucian… mais… comment dire… appelé par lui? Et si le cirque, l’âne, les îles, l’enfant… avaient commencé d’exister parce que Lucian était là pour les recevoir?
La séance continue, extérieurement “comme si de rien n’était”, mais en profondeur, quelque chose s’ouvre et se retourne. Puis lentement la chose se révèle. Un point où tout se rejoint. Mais à peine a-t’on l’impression que la mémoire et la réalité forment un tout… que celui-ci commence à se confondre. 
 
 

samedi 29 novembre 2025

Absorbed

 

 “…I did not at all imagine that the author from whom I borrowed this story was almost forcing me to follow in his footsteps, so much gentleness and simplicity there is in continuing this tale, and so true it seemed to me…

 

When night fell, Félix, his mind tired and still absorbed by the stories of Lucian and Igniatius, alias Don Carotte and his donkey, abandoned himself to his small passions. A Sunday poet, in complete freedom, with no other restraint than the limits of his imagination, he let himself drift into writing, convinced that this letting-go might lead him where other colleagues refuse to go. With no more obstacles, images poured in without interruption, and Félix, without knowing how, set them down on the pages of his notebooks. Soon, writing and drawing became one…
 
I saw, in a desert of drifting islands,
Three beings without identity, three souls that survive.
 Here, everything is extinguished. The circus holds no hate.
The canvases, heavy with shadows, sink into the ring.
No more cries. No more steps. The wind alone, step by step,
Crosses through the night the high wooden tiers.
The ring, once queen, is now a bed of ash;
Hanging ropes tremble like branches.
This place was once a theatre, it is now no more than a sigh.
Yet ruins sometimes begin to glow again.
For the vast darkness, standing in for the world,
Unveils the light in its deep obscurities,
And in this total blackness, the quivering past
Rises like a star in the heart of the firmament.
It is here that, once, the Walker engendered
His wandering steps, his breath and his unclarified fears.
Here that the Golden Ear, in an empty box,
Heard the timid spectres whisper.
Here that the Shadow-Maker, sheltered by the curtains,
Invented a thousand lives, a thousand faces, a thousand echoes.
Here that three destinies, under the fire of the stars,
Tried to understand each other through a thousand veils.
The circus now deserted still offers itself
As a living tomb that keeps and devours.
But the soul of this place, beneath the fiery dust,
Pulses like a great heart forgotten by the gods.

Absorvido

 
«… eu não pensava de modo algum que o autor de quem retirei esta história quase me obrigava a seguir-lhe o rasto, tanta é a doçura e a ingenuidade em prosseguir este relato, e tanto me parecia verdadeiro…»
 
 
 

Chegada a noite, Félix, com o espírito cansado, ainda absorvido pelas histórias de Lucian e de Igniatius, também chamado Don Carotte, e do seu burro, entrega-se às suas pequenas paixões. Poeta de domingo, em total liberdade, sem outro travão senão os limites da sua imaginação, deixa-se levar a escrever, convencido de que esse abandono poderá levá-lo aonde outros colegas recusam ir. Sem mais obstáculos, as imagens afluem sem cessar e Félix, sem saber como, vai-as deitando no papel dos seus cadernos. Em breve, a escrita e o desenho já não são senão uma só coisa…

Vi, num deserto de ilhas à deriva,
Três seres sem identidade, três almas que sobrevivem.
Aqui, tudo se apagou. O circo está sem ódio.
As lonas, pesadas de sombras, caem de novo na arena.
Já não há gritos. Já não há passos. Só o vento, passo a passo,
Atravessa na noite as altas bancadas de madeira.
A pista, outrora rainha, é uma cinza branca;
Cordas pendentes tremem como ramos.
Este lugar foi um teatro, já não é mais que um suspiro.
Mas as ruínas por vezes recomeçam a luzir.
Pois a escuridão vasta, tomando o lugar do mundo,
Revela a luz nas suas profundezas sombrias,
E neste negro total, o passado, a tremer,
Ergue-se como um astro no coração do firmamento.
Foi aqui que, em tempos, o Caminhante gerava
Os seus passos errantes, o seu fôlego e os seus medos sem clareza.
Aqui que a Orelha de Ouro, numa frisa vazia,
Ouvia murmurar os espectros tímidos.
Aqui que o Fazedor-de-Sombra, ao abrigo dos cortinados,
Inventava mil vidas, mil rostos, mil ecos.
Aqui que três destinos, sob o fogo das estrelas,
Tentavam compreender-se através de mil véus.
O circo, agora deserto, oferece-se ainda
Como um túmulo vivo que guarda e devora.
Mas a alma deste lugar, sob o pó em brasa,
Pulsa como um grande coração esquecido pelos deuses.

Absorbé

«  … je ne pensais point que l'auteur d'où j'ai pris cette histoire, me forçait presque à suivre sa trace tant il y a de douceur et naïveté à poursuivre ce propos, et tant il me semblait être véritable…»
 
 

La nuit venue, Félix, l'esprit fatigué, encore absorbé par les histoires de Lucian et d'Igniatius alias Don Carotte et son âne, se laisse aller à ses petites passions. Poète du dimanche, en toute liberté, sans autre frein que les limites de son imagination, il se laisse aller à écrire, persuadé que de se laisser-aller pourrait le mener là ou d'autres confrères refusent d'aller. Sans plus d’obstacles les images affluent sans discontinuer et Félix, sans savoir comment les couche sur le papier de ses carnets. Bientôt l’écriture et le dessin ne font qu’un…
 

J’ai vu, dans un désert d’îles à la dérive,
Trois êtres sans identités, trois âmes qui survivent.

Ici, tout s’est éteint. Le cirque est sans haine.

Les toiles, lourdes d’ombres, retombent dans l’arène.

Plus un cri. Plus un pas. Le vent seul, pas à pas,

Traversent la nuit les hauts gradins de bois.
La piste, autrefois reine, est une cendre blanche;

Des cordages pendants tremblent comme des branches.

Ce lieu fut un théâtre, il n’est plus qu’un soupir.

Mais les ruines parfois recommencent à luire.
Car l’obscurité, vaste et tenant lieu de monde,

Dévoile la lumière en ses obscurités profondes 
Et dans ce noir total, le passé, frémissant,

Se lève comme un astre au cœur du firmament.

C’est ici que jadis le Marcheur enfantait

Ses pas d’errant, son souffle et ses peurs sans clarté.

Ici que l’Oreille d’or, dans une loge vide,

Entendait murmurer les spectres timides.
Ici que le Faiseur-d’ombre, à l’abri des rideaux,

Inventait mille vies, mille faces, mille échos.

Ici que trois destins, sous le feu des étoiles,

Tentaient de se comprendre à travers mille voiles.
Le cirque maintenant, déserté, s’offre encore

Comme un tombeau vivant qui garde et qui dévore.

Mais l’âme de ces lieux, sous la poussière en feu,

Pulse comme un grand cœur oublié par les dieux.
 

vendredi 28 novembre 2025

Simultaneously

 
“It is an extremely dynamic and dramatic schema. One sees, first of all, a superposition of strata corresponding to what Freud notes, at the lower left, as the ‘depths of repression’. ‘Scenes’ or representations, potentially traumatic, are embedded there, like nuggets in a thickness of sediments. And then all of this literally begins to rise up: from the deposited-buried images, figured by Freud in the form of small horizontal dashes, three ‘symptoms’ surge forth, each of them associating several repressed scenes.
The energy of these emergences is emphasised by the abundance of diagonal lines, solid or dotted, which go back and forth but all converge toward these three small symptomatic tips: they seem drawn so as to suggest to the reader the idea that they would be capable of tearing through all the protective surfaces. They are like ‘arrows of time’ that have been raised up from their habitual and comfortable horizontality. They are untimely in that they are unexpected, aggressive, disruptive and almost, if I may say so, as joyful as they are dangerous. Like pikes brandished in the course of some revolutionary procession.”

Georges Didi-Huberman, Imaginer recommencer, Les Éditions de Minuit, p. 62



Félix’s notebook
Notes after the session with Lucian
(grey notebook)

I have just lived through one of those sessions where, by one of those reversals that only deep clinical work allows, the analyst finds himself caught in the trap of his own symbol.
Lucian brought me a complicated case; I find myself with a double case.
The discovery I made — or rather, that was made through me — is of the kind one cannot simply attribute to chance. The face that appears in the drawings, that half-erased, half-obvious figure, so vibrant one might take it for alive, resembles Lucian and, simultaneously, this Don Carotte who today calls himself Igniatius.
I cannot help seeing in it a form of telescoping: two lines of subjectivity, two unfinished silhouettes which, instead of opposing each other, overlap in the same shadow. This is not a coincidence; it is a superposition.
In Lacan, this takes on a very particular form. When a subject sees his own face in the other, and the other sees his face in the subject, this is not recognition. Nor is it a mirror effect. It is the revelation of one and the same symbolic place where each believes he is seeing the other, when in fact he is finally touching himself.
But here, the matter is subtler still: it is not Lucian who drew this figure, it is Igniatius. And yet this figure resembles Lucian… as much as it resembles him.
I tell myself that the person or persons we distinguish there are not a portrait… rather… that it would be a point of access. A door.
A strange urge came to mind. I said to myself that if I wanted to understand better how they function, I too would have to start drawing… and the result — a surprising result — did not take long to appear, despite my inability to render the depths of my thought legible. Very quickly there emerged from this little sketch something, a kind of illumination, that I can connect with what I have heard from Lucian… and… probably from Igniatius as well…


I am jotting this down quickly, before my gaze changes… but I already notice changes in my sketch… or else I am forced to admit that it may be my gaze that is changing…
A kind of race has set in without my noticing… as in my sketch, done as quickly as possible, barely a few minutes, so as to let in as much unconscious material as I could… I drew with large, marked strokes, strong contrasts, no greys at all, only solid black and white left blank — just a few elements to clarify my ideas and above all to try not to deceive myself…
The line is energetic, at times trembling, with contours not entirely closed. Horizontal format, delimited by an irregular black frame. One might have the impression of looking at a scene through a frame or a screen. One has to start somewhere… set a frame… even if later it might explode.
On the left, without even thinking — I will do that later — I traced a large descending diagonal, like a mast or a railing, bordered by a series of dark, repetitive shapes which, for an instant, I thought I saw as shadows of figures or as openings. Suspended at the top left, a sort of lantern or lamp, hanging by a ring, sharply tilted, almost about to fall. At the bottom left, broad oblique bands, alternating black and white, evoking a tent cloth, a sail, or a striped curtain… That is how, in the moment, I saw it…
Numerous cables, ropes and poles cross the image in every direction… On the right, two large dark curtains frame a lighter space, like a theatre stage or a recess. In that recess one sees a small suspended object: a circle with a little hanging shape below… I thought, without much conviction, of a clock, a mobile, a pendant, a stylised moon. At the bottom right, clearly, I saw a small human figure lying down or leaning very far forward, wearing a hat, seeming to pull on a rope or to be caught in the rigging. It is tiny in relation to the rest of the composition.
Once the sketch was finished, I allowed myself a few hypotheses… without in any way making a diagnosis…
There are diagonals everywhere in this sketch, the absence of a stable base, the ropes pulling in all directions create an impression of instability. Nothing is settled, nothing is really flat — like a ship’s deck in mid-sea, a tent whipped up by the wind, a stage out of balance.
I see tension there. The ropes are taut, they pull, they hold back, they support as well. One can see in this the way the subject tries to hold together something within himself that threatens to fall apart or collapse.
I also see control. Ropes also serve to control a mast, for example… or a curtain… which might be a sail, or a puppet. This can evoke a mode of functioning in which one must maintain tight control over emotions and thoughts so that “things don’t fly off in all directions”.
In a patient who does not speak much about himself, or who flatly refuses to talk about himself, this could suggest someone who feels an internal chaos but puts in place many devices to control it, order it, tie it down.
In a way, if I apply methodically my own therapeutic path and the analysis I normally apply to my patients, I have to say that I had, in my two hands, two destinies. In my left hand, that of Igniatius and the follies… not to say the dancing lights of the one he had become: Don Carotte locked in his struggle with the fire of language (I almost said “at the mercy of language”…); and in my right hand, that of Lucian, his therapist, apparently more stable…
— Igniatius, abandoned subject, without parents, without known origin, has always been searching for a form, a boundary, a face from which to speak himself. And now, into his life, there enters a man
— Lucian, who accepts, by inadvertence or by unconscious desire, to offer him a border of speech, a space of listening.
— The face in the drawings would then be the sign of a rarer phenomenon:
the appearance of a third-figure: a composite face, a face that belongs to no one in particular but that two subjects co-produce because they share the same hole, the same lack of origin. Both are, in different ways, foundlings. One by life, the other by language. That is why the drawn figure resembles them both: it is the imaginary form of their common point. A kind of absent ancestor who has slipped into the drawing as a synthesis of their two solitudes.
What worries me — and fascinates me — is that Lucian saw nothing until I pointed it out. This is where the dimension of desire emerges. The unconscious, Lacan says, is the discourse of the Other. Well, here, Lucian’s unconscious resides in Igniatius’s drawing. It speaks in the lines of the other, as though Igniatius had anticipated the form of the subject who would recognise him.
I must remain lucid: Lucian is caught in a relation of recognition, not narcissistic, but originary. He recognises a figure that is lacking in him and that appears in the other.
Igniatius, for his part, recognises in Lucian a figure he has never had.
This is not simply transference; it is a knotting.
Sibony would say that they are both seeking each other in the “between”: in that space where two lines do not quite touch, but where their distance becomes a bond stronger than presence.
And now, the crucial point:
Why did Lucian leave his notebook open?
I do not believe in the “forgetting” at all. I believe in the desire to see the other read what one does not dare to say.
I believe that Lucian, without knowing it, was waiting for Igniatius to discover this double face. Perhaps he was even waiting to see it himself — in another’s eyes.
What is at stake here is dangerous, because it is beautiful. And what is beautiful, in analysis, is always a little perilous: one seeks to enter into it rather than to pass through it.
My task is to guard the boundary. To prevent the vertigo from hardening into identity. To prevent one from becoming the other inside that silhouette that engulfs them.
But also: to protect this discovery.
For that is what it is.
Something is being invented here, between them, that I had never seen so clearly.
The drawn figure is neither Lucian nor Igniatius. It is what both of them lack. It is also their common point of origin.
The face of a scene that has never taken place, but which is waiting for them in the shadows.
To be watched very closely:
Where is this face going to lead us?


Simultaneamente

 
«É um esquema extremamente dinâmico e dramático. Vê-se, antes de mais, uma sobreposição de camadas que corresponde àquilo que Freud assinala, em baixo à esquerda, como sendo as “profundezas do recalcamento”. “Cenas” ou representações, eventualmente traumáticas, aí se encontram enquistadas, como pepitas numa espessura de sedimentos.
E depois, tudo isso se ergue literalmente: a partir das imagens depositadas-enterradas, figuradas por Freud sob a forma de pequenos traços horizontais, irrompem três “sintomas”, cada um deles associando várias cenas recalcadas.
A energia desses irrompimentos é enfatizada pela abundância de linhas diagonais, contínuas ou pontilhadas, que vão e vêm, mas convergem todas para essas três pequenas pontas sintomáticas: parecem desenhadas para sugerir ao leitor a ideia de que seriam capazes de rasgar todas as superfícies de protecção. São como “setas do tempo” que se teriam erguido da sua habitual e confortável horizontalidade. São inactuais na medida em que são inesperadas, agressivas, disruptivas e quase, atrevo-me a dizê-lo, tão alegres quanto perigosas. Como lanças erguidas no decurso de alguma procissão revolucionária.»

Georges Didi-Huberman, Imaginer recommencer, Les Éditions de Minuit, p. 62


Caderno de Félix
Notas após a entrevista com Lucian
(caderno cinzento)

Acabo de viver uma dessas sessões em que, por um daqueles volte-faces que só a clínica profunda permite, o analista se vê apanhado na armadilha do seu próprio símbolo.
Lucian trouxe-me um caso complicado; dou por mim com um caso duplo.
A descoberta que fiz — ou melhor, que se fez através de mim — é daquelas que não se podem atribuir simplesmente ao acaso. O rosto que figura nos desenhos, essa figura meio apagada, meio evidente, tão vibrante que se poderia julgá-la viva, parece-se com Lucian e, simultaneamente, com esse Don Carotte que hoje diz chamar-se Igniatius.


Não consigo deixar de ver aí uma forma de telescopagem: duas linhas de subjectividade, duas silhuetas inacabadas que, em vez de se oporem, se recobrem na mesma sombra. Não é uma coincidência: é uma sobreposição.
Isso, em Lacan, assume uma forma muito particular. Quando um sujeito vê o seu próprio rosto no outro, e o outro vê o seu rosto no sujeito, não se trata de um reconhecimento. Também não é um efeito de espelho. É a revelação de um mesmo lugar simbólico onde cada um julga ver o outro quando, na realidade, toca finalmente em si próprio.
Mas aqui a coisa é ainda mais subtil: não foi Lucian que desenhou esta figura, foi Igniatius. E, no entanto, essa figura parece-se com Lucian… tanto quanto com ele.
Digo para mim que a pessoa ou as pessoas que distinguimos ali não são um retrato… antes… um ponto de acesso. Uma porta.
Veio-me à cabeça um desejo curioso. Disse para comigo que, se queria compreender melhor como funcionam, teria também de me pôr a desenhar… e o resultado — um resultado surpreendente — não se fez esperar, apesar da minha incapacidade em tornar legível o fundo do meu pensamento. Depressa se destacou deste pequeno esboço qualquer coisa, uma espécie de iluminação, que consigo relacionar com aquilo que ouvi de Lucian… e… provavelmente de Igniatius…
Aponto isto rapidamente, antes que o meu olhar mude… mas já noto alterações no meu esboço… ou então sou obrigado a constatar que talvez seja o meu olhar que muda…
Instalou-se uma espécie de corrida à minha revelia… como no meu esboço, feito o mais depressa possível, em poucos minutos, de modo a deixar entrar o máximo de material não consciente… Tracei a grandes golpes marcados, com contrastes fortes, sem nenhum cinzento, apenas preto cheio e branco deixado vazio — alguns elementos para esclarecer as ideias e, sobretudo, para tentar não me enganar…
O traço é enérgico, por vezes trémulo, com contornos não totalmente fechados. Formato horizontal, delimitado por uma moldura preta irregular. Pode ter-se a impressão de olhar para uma cena através de uma moldura ou de um ecrã. É preciso começar por algum lado… pôr uma moldura… mesmo que mais tarde ela possa rebentar.
À esquerda, sem sequer reflectir — fá-lo-ei mais tarde — tracei uma grande diagonal descendente, como um mastro ou uma balaustrada, ladeada por uma série de formas escuras repetidas que, por um instante, julguei ver como sombras de personagens ou aberturas. Suspensa no alto à esquerda, uma espécie de lanterna ou candeeiro, pendurado por um aro, muito inclinado, quase a cair. Em baixo à esquerda, largas faixas oblíquas, pretas e brancas alternadas, evocando uma lona de tenda, uma vela ou um cortinado às riscas… Foi assim que, no momento, o vi…
Numerosos cabos, cordas e postes atravessam a imagem em todos os sentidos… À direita, dois grandes cortinados escuros enquadram um espaço mais claro, como um palco de teatro ou um recanto. Nesse recanto vê-se um pequeno objecto suspenso: um círculo com uma pequena forma pendente por baixo… pensei, sem grande convicção, num relógio, num móbil, num pendente, numa lua estilizada. Em baixo à direita, via claramente uma pequena figura humana deitada ou muito inclinada para a frente, de chapéu na cabeça, parecendo puxar uma corda ou estar presa nos cordames. É minúscula em relação ao resto da composição.
Assim que o esboço terminou, deixei-me ir em algumas hipóteses… sem de forma alguma fazer um diagnóstico…
Há diagonais por todo o lado neste esboço, a ausência de uma base estável, as cordas que puxam em todos os sentidos dão uma impressão de instabilidade. Nada está pousado, nada está verdadeiramente a direito — como um convés de barco em pleno alto-mar, uma tenda levantada pelo vento, um palco em desequilíbrio.
Vejo aqui tensão. As cordas estão esticadas, puxam, retêm, sustentam também. Pode ver-se aí a maneira como o sujeito tenta manter unido qualquer coisa em si que ameaça desagregar-se ou cair.
Vejo também controlo. As cordas também servem para controlar, um mastro, por exemplo… ou um cortinado… que poderia ser uma vela, uma marioneta. Isso pode evocar um funcionamento em que é preciso manter um controlo apertado sobre as emoções, os pensamentos, para que “isso não dispare para todos os lados”.
Num paciente que não fala o suficiente de si ou que, pura e simplesmente, se recusa a falar de si, isto poderia fazer lembrar alguém que sente um caos interno, mas que põe em marcha muitos dispositivos para o controlar, ordenar, amarrar.
De certo modo, se aplicar com método o meu próprio caminho terapêutico e a análise que normalmente aplico aos meus pacientes, devo dizer que tinha, entre as duas mãos, dois destinos. Na mão esquerda, o de Igniatius e as loucuras… para não dizer as luzes dançantes daquele que ele se tornara: Don Carotte em luta com o fogo da linguagem (estive quase para dizer “em bute com a linguagem”…) e, na mão direita, o de Lucian, o seu terapeuta, aparentemente mais estável…
— Igniatius, sujeito abandonado, sem pais, sem origem conhecida, procura desde sempre uma forma, uma margem, um rosto a partir do qual se possa dizer. E eis que, na sua vida, entra um homem
— Lucian, que aceita, por inadvertência ou por desejo inconsciente, oferecer-lhe uma borda de palavra, um espaço de escuta.
— O rosto nos desenhos seria então o sinal de um fenómeno mais raro:
o aparecimento de uma figura-terceiro, um rosto compósito, um rosto que não pertence a ninguém em particular, mas que dois sujeitos co-produzem porque têm o mesmo buraco, a mesma falta de origem. Ambos são, de maneiras diferentes, filhos encontrados. Um pela vida, o outro pela linguagem. É por isso que a figura desenhada se parece com os dois: é a forma imaginária do ponto comum. Uma espécie de antepassado ausente que se teria infiltrado no desenho como síntese das duas solidões.
O que me inquieta, e me fascina, é que Lucian nada tenha visto antes de eu lho mostrar. É aí que surge a dimensão do desejo. O inconsciente, diz Lacan, é o discurso do Outro. Pois bem, aqui, o inconsciente de Lucian reside no desenho de Igniatius. Fala nos traços do outro, como se Igniatius tivesse antecipado a forma do sujeito que o iria reconhecer.
Tenho de me manter lúcido: Lucian está apanhado numa relação de reconhecimento, não narcísica, mas originária. Ele reconhece uma figura que lhe falta e que aparece no outro.
Igniatius, por seu lado, reconhece em Lucian uma figura que nunca teve.
Não se trata simplesmente de uma transferência: é um enlaçamento, um nó.
Sibony diria que um e outro se procuram no “entre”: nesse espaço em que duas linhas não se tocam completamente, mas em que a distância entre elas se torna um vínculo mais forte do que a presença.
E agora, o ponto crucial:
Porque é que Lucian deixou o seu caderno aberto?
Não acredito nada no esquecimento. Acredito no desejo de ver o outro ler aquilo que não ousamos dizer.
Acredito que Lucian, sem o saber, esperava que Igniatius descobrisse esse rosto duplo. Talvez esperasse até vê-lo ele próprio — nos olhos de um outro.
O que está em jogo aqui é perigoso, porque é belo. E o que é belo, em análise, é sempre um pouco perigoso: tende-se a querer entrar nele em vez de o atravessar.
A minha tarefa é guardar a fronteira. Impedir que o vertigem se transforme em identidade. Impedir que um se torne o outro nessa silhueta que os engole.
Mas também: proteger esta descoberta.
Porque é isso mesmo que é.
Qualquer coisa está a inventar-se aqui, entre eles, que eu nunca tinha visto com tanta clareza.
A figura desenhada não é Lucian nem Igniatius. É aquilo que falta aos dois. É também o seu ponto de origem comum.
O rosto de uma cena que nunca teve lugar, mas que os espera na sombra.
A vigiar muito de perto:
Para onde é que este rosto nos vai conduzir?


Simultanément

 


“C'est un schéma extrêmement dynamique et dramatique. On voit, d'abord, une superposition de strates correspondant à ce que Freud note, en bas à gauche, comme étant la (ou les) «profondeurs du refoulement». Des «scènes» ou représentations, éventuellement traumatisantes, y sont enkystées, comme des pépites dans une épaisseur de sédiments. Et puis tout cela vient littéralement se soulever: depuis les images déposées-enfouies, figurées par Freud sous l'espèce de petits traits horizontaux, surgissent trois «symptômes» associant, chacun, plusieurs scènes refoulées. L'énergie de ces surgissements est emphatisée par l'abondance des lignes diagonales, directes ou pointillées, qui vont et viennent, mais convergent toutes vers ces trois petites pointes symptomales: elles semblent dessinées pour suggérer au lecteur l'idée qu'elles seraient capables de déchirer toutes les surfaces de protection. Elles sont comme des «flèches de temps» qui se seraient redressées de leur habituelle et confortable horizontalité. Elles sont inactuelles en ce qu'elles sont inattendues, agressives, disruptives et presque, si j'ose, aussi joyeuses que dangereuses. Comme des piques brandies au cours de quelque procession révolutionnaire.”


Georges Didi-Huberman, Imaginer recommencer, Les Éditions de Minuit, p.62
 


Carnet de Félix
 Notes après l’entretien avec Lucian
(carnet gris)

Je viens de vivre une de ces séances où, par un de ces retournements que seule la clinique profonde permet, l’analyste se retrouve pris au piège de son propre symbole.
Lucian m’a apporté un cas compliqué; je me retrouve avec un cas double. La découverte que j’ai faite, ou plutôt qui s’est faite à travers moi, est de celles que l’on ne peut pas attribuer simplement au hasard. Le visage qui figure dans les dessins: cette figure à demi effacée, à demi évidente, si vibrante qu’on pourrait la croire vivante, ressemble à Lucian et, simultanément, à ce Don Carotte qui dit aujourd’hui être Igniatius.
Je ne peux m’empêcher d’y voir une forme de télescopage: deux lignes de subjectivité, deux silhouettes inachevées, qui, au lieu de s’opposer, se recouvrent dans une même ombre. Ce n’est pas une coïncidence: c’est une superposition.
Cela, chez Lacan, a une forme très particulière. Quand un sujet voit son propre visage dans l’autre, et l’autre voit son visage dans le sujet, ce n’est pas une reconnaissance. Ce n’est pas non plus un effet miroir. C’est la révélation d’un même lieu symbolique où chacun croit voir l’autre alors qu’il touche enfin à lui-même.
Mais ici, la chose est plus subtile encore: ce n’est pas Lucian qui a dessiné cette figure, c’est Igniatius. Et pourtant, cette figure ressemble à Lucian… autant qu’à lui.
Je me dis que à… ou les personnes que l’on distingue n’est pas ou ne sont pas un portrait…plutôt… que ce serait un point d’accès. Une porte.
Une curieuse envie m'est venue à l'esprit. Je me suis dit que si je voulais comprendre mieux comment ils fonctionnent il faudrait que moi aussi je me mette à dessiner... et le résultat, un résultat surprenant, ne s'est pas fait attendre, malgré mon incapacité à rendre lisible le fond de ma pensée, il s’est vite dégagé de cette petite esquisse, quelque chose, une sorte d'éclairage, que je peux relier avec ce que j'ai entendu de Lucian... et... probablement d'Igniatius...
 
 

Je note rapidement, avant que mon regard ne change... mais déjà je remarque des changements dans mon esquisse... ou alors force est de constater que ce peut être mon regard qui change... Une sorte de course s'est installée à mon insu... comme dans mon esquisse, faite le plus rapidement possible, à peine quelques minutes, de manière à laisser entrer le plus possible de choses non conscientes... Je traçais à grands traits marqués avec des contrastes forts, sans aucun gris, uniquement du noir plein et du blanc laissé vide, ces quelques éléments pour m'éclaircir les idées et surtout pour essayer de ne pas me tromper... Le trait est énergique, parfois tremblé, avec des contours pas tout à fait fermés. Format horizontal, délimité par un cadre noir irrégulier. On pourrait avoir l’impression de regarder une scène à travers un cadre ou un écran. Il faut bien débuter... mettre un cadre... même si, plus tard il pourrait éclater. À gauche, sans même réfléchir, je le ferai plus tard, j'ai tracé une grande diagonale oblique descendante, comme un mât ou une rambarde, bordée d’une série de formes sombres répétitives que, pendant un instant je croyais voir comme des ombres de personnages ou des ouvertures. Suspendue en haut à gauche, une sorte de lanterne ou lampe, accrochée par un anneau, très inclinée, presque en train de tomber. En bas à gauche, de larges bandes obliques, noires et blanches alternées, évoquant une toile de tente, une voile ou un rideau rayé... C'est ainsi que, sur le moment, je le voyais... De nombreux câbles, cordes et poteaux traversent l’image en tous sens... À droite, deux grands rideaux sombres encadrent un espace plus clair, comme une scène de théâtre ou un renfoncement. Dans ce renfoncement, on voit un petit objet suspendu: un cercle avec une petite forme pendante dessous... je pensais, sans trop y croire, à une horloge, un mobile, un pendentif, une lune stylisée. En bas à droite, clairement, je voyais une petite figure humaine allongée ou très penchée, portant un chapeau, semblant tirer une corde ou être prise dans les cordages. Elle est minuscule par rapport au reste de la composition.
Une fois l'esquisse achevée, je me laissais aller à quelques hypothèses... sans aucunement faire de diagnostic...
Il y a dans cette esquisse des diagonales partout, l’absence de base stable, les cordes qui tirent dans tous les sens donnent une impression d'instabilité. Rien n’est posé, rien n’est vraiment à plat, comme un pont de bateau en pleine mer, une tente soulevée par le vent, une scène en déséquilibre.
J'y vois de la tension. Les cordes sont tendues, ça tire, ça retient, ça soutient aussi. On peut y voir la manière dont le sujet essaye de tenir ensemble quelque chose en lui qui menace de se désagréger ou de tomber.
J'y vois aussi du contrôle. Les cordes servent aussi à contrôler, un mât, par exemple... ou un rideau... qui pourrait être une voile, une marionnette. Cela peut évoquer un fonctionnement où il faut maintenir un contrôle serré sur ses émotions, ses pensées, pour que « ça ne parte pas dans tous les sens ».
Chez un patient qui ne parle pas assez de lui ou qui, carrément, refuse de parler de lui, cela pourrait faire penser à quelqu’un qui ressent un chaos interne, mais qui met en place beaucoup de dispositifs pour le contrôler, l’ordonner, l’attacher.
 

En quelque sorte, si j'applique avec méthode mon propre chemin thérapeutique et l'analyse que normalement j'applique à mes patients, je me devais de me dire que j''avais entre les mains deux destins. Dans ma main gauche celui d'Igniatius et les folies... pour ne pas dire les lumières dansantes de celui qu'il était devenu: Don Carotte en lutte avec le feu du langage (j'ai failli dire en butte avec le langage...) et dans ma main droite celui de Lucian, son thérapeute, apparemment plus stable...
– Igniatius, sujet abandonné, sans parents, sans origine connue, cherche depuis toujours une forme, un bord, un visage depuis lequel se dire. Et voilà que, dans sa vie, entre un homme
– Lucian, qui accepte, par inadvertance ou par désir inconscient, de lui offrir un bord de parole, un espace d’écoute.
– Le visage dans les dessins serait alors le signe d’un phénomène plus rare:
l’apparition d’une figure-tiers, un visage composite, un visage qui n’appartient à personne en propre mais que deux sujets co-produisent parce qu’ils ont le même trou, le même manque d’origine. Les deux sont, à des titres différents, des fils trouvés. L’un par la vie, l’autre par le langage. C’est pourquoi la figure dessinée ressemble aux deux : elle est la forme imaginaire de leur point commun. Une sorte d’ancêtre absent qui se serait glissé dans le dessin comme une synthèse des deux solitudes.
Ce qui m’inquiète, et me fascine, c’est que Lucian n’ait rien vu avant que je le lui montre. C’est là que la dimension du désir apparaît. L’inconscient, dit Lacan, c’est le discours de l’Autre. Eh bien ici, l’inconscient de Lucian réside dans le dessin d’Igniatius. Il parle dans les traits de l’autre, comme si Igniatius avait anticipé la forme du sujet qui allait le reconnaître.
Je dois rester lucide: Lucian est pris dans un rapport de reconnaissance, non pas narcissique, mais originaire. Il reconnaît une figure qui manque en lui et qui apparaît dans l’autre.
Igniatius, lui, reconnaît dans Lucian une figure qu’il n’a jamais eue.
Ce n’est pas simplement un transfert: c’est un nouage.
Sibony dirait que l’un et l’autre se cherchent dans “l’entre”: dans cet espace où deux lignes ne se touchent pas tout à fait mais où leur distance devient un lien plus fort que la présence.
Et maintenant, le point crucial:
Pourquoi Lucian a-t-il laissé son carnet ouvert?
Je ne crois pas du tout à l’oubli. Je crois au désir de voir l’autre lire ce qu’on n’ose pas dire.
Je crois que Lucian, sans le savoir, attendait qu’Igniatius découvre ce visage double. Peut-être même attendait-il de le voir lui-même, dans les yeux d’un autre.
Ce qui se joue ici est dangereux, parce que c’est beau. Et ce qui est beau, en analyse, est toujours un peu périlleux: on cherche à y entrer plutôt qu’à le traverser.
Ma tâche est de garder la frontière. Empêcher le vertige de devenir identité. Empêcher que l’un devienne l’autre dans cette silhouette qui les engloutit.
Mais aussi: protéger cette trouvaille.
Car c’en est une.
Quelque chose s’invente ici, entre eux, que je n’avais jamais vu aussi clairement.
La figure dessinée n’est ni Lucian, ni Igniatius. Elle est ce qui manque aux deux. Elle est aussi leur point d’origine commun.
Le visage d’une scène qui n’a jamais eu lieu mais qui les attend dans l’ombre.
À surveiller très étroitement: Où ce visage va-t-il nous conduire?


jeudi 27 novembre 2025

Double Resemblance

 
“When the word ‘mind’ comes out of the Papalagi’s mouth, his eyes grow big, round and fixed; his chest swells, he breathes deeply and takes on the attitude of a warrior who has vanquished the enemy. For he is particularly proud of this ‘mind’.
This is not the almighty Great Spirit that the missionaries call ‘God’ and of whom we are all only a wretched reproduction, but rather the small spirit that allows man to think.
When I look from here at the mango tree behind the church, that is not mind, I am only seeing it. But if I realise that it is taller than the church, that is mind. It is therefore not enough to look at something; one must also draw knowledge from it.”

The Papalagi, Erich Scheurmann, Pocket



Lucian, so often quick, sharp, biting, froze. For the first time he saw himself in the drawing he assumed to be from the hand of Igniatius — and which Igniatius, who had brought it to him… believed to be from the hand of Lucian…
— We haven’t been seeing each other for very long… He tells me he found them in a gallery… but I must confess to you, I highly doubt that’s the case… My opinion is that he is the author…
But… how could he have made all these drawings in so little time?
Félix spoke again, thinking as he did so, murmuring almost to himself.
— It is your resemblance that has just been revealed… by him… in a kind of silence that was no longer emptiness, but depth.
Félix and Lucian continued to examine the drawing in the slanting light of the lamp, a light almost harsh which, by a strange coincidence, accentuated the features of the face sketched on the paper to the point of giving it a more vivid air, as if the line itself were breathing.
— Félix… this face…
Félix lifted his eyes, sharp, attentive, ready to catch the confession. Lucian drew breath, and his voice rose a notch:
— This face… doesn’t only look like me.
Félix frowned slightly, intrigued.
— What do you mean?
Lucian ran his hand across his forehead, like a man slipping out of a skin that has become too tight.
— It looks like him… at least as much, if not more… like Igniatius.
There was a silence so clear one might have thought the room had been emptied of air.
Félix went still.
— You think it looks like Igniatius? he said, in a voice that, for once, had lost its usual lightness.
Lucian nodded.
— Yes. I haven’t told you, and I don’t know why I didn’t. Perhaps because I didn’t want to admit it, perhaps because it frightened me. But here is the truth: the first time Don Carotte — I mean Igniatius — showed me these drawings, I had the disconcerting, almost staggering feeling that this face… this figure leaning over the islands, watching and enduring storms and volcanoes… this profile that always stays slightly to the side… was him as much as it was me.
Félix suddenly stood up — which, coming from him, was the equivalent of a shout. He paced a few steps across the room, as though he needed to clear some space around that sentence which had just opened a breach.
— Good God, he murmured. Good God… then that means…


Lucian said nothing, but his eyes were searching Félix’s, like a man on the edge of a cliff looking for a place to put his foot.
Félix came slowly back to the table, leaned on his elbows, and stared at the drawings as if seeing them for the first time.
— Lucian… if the face looks like you… and like Igniatius… then we are no longer in simple transference. We are no longer even in “you represent what I lack.”
He exhaled:
— We are in… superposition.
Lucian blinked.
— Superposition?
— Yes, said Félix, and it is infinitely rarer. It’s when two subjects, each from his own edge, confound one and the same third — the same symbolic face — and both begin to inhabit it. As if, without knowing it, you came from the same place of lack. As if you were, for each other, the same perforated silhouette edging the void.
He added, with an intensity that was almost painful:
— Lucian… it’s not simply that he sees you.
Lucian felt a shiver run down his neck.
— Félix… you think that… that we resemble each other?
Félix smiled — a sad, anxious, admiring smile.
— I don’t know if you resemble each other, Lucian.
He picked the drawing up again.
— Look: this figure… is neither entirely you, nor entirely him. It’s an in-between. An impossible face. A face braided from two solitudes searching for a form.
He laid the drawing down with studied slowness.
— And now… listen to me carefully: the fact that this face appeared in his drawing, and not in yours, means that he is the one who has borne, for you both, the function of revelation. He sends you back an image you could never have produced alone, but which he could “touch” because he has lived in pure lack.
He broke off.
Then, with a violent gentleness, almost Sibony-like:
— Lucian, it is not he who looks like you.
Lucian turned pale.
Félix murmured, as if confiding a secret:
— What if this figure… came from before you?
Lucian closed his eyes.
Félix, gently, placed a hand on his shoulder:
— It is not Igniatius who is inventing your resemblance.
Silence fell back over the scene…
Lucian reached out, delicately took hold of the drawing that Félix was handing him, and brought it a little closer, as though to avoid it and confront it at the same time.
— It’s that you occupy, in his imaginary, the same space that he occupies in yours. But… it may be that in him you are recognising yourself, and that it is you who resemble a figure he has “dug up”…
— Where would he have found it?
— How should I know… in his mind… in a place where you have never looked? In a silence you carry without having words for it?
A vertigo ran through Lucian — the vertigo of a man watching the curtain of his own origin being torn open.
Félix resumed in a low voice, as though speaking to himself.
Lucian, until then petrified, suddenly felt a wave rising within him, a familiar discomfort and, at the same time, an irrepressible necessity. The silence thickened, becoming almost solid between them.
And then, in that silence stretched tight like a wire on which the slightest word could tip everything over, Lucian murmured, in a low, almost strangled voice, as though speaking through a crack he had never known how — nor dared — to look at.

Dupla semelhança

 
“Quando a palavra «espírito» sai da boca do Papalagi, os seus olhos tornam-se grandes, redondos e fixos; o peito ergue-se, ele respira profundamente e assume a atitude do guerreiro que venceu o inimigo. Pois tem um orgulho particular neste «espírito».
Não se trata aqui do Grande Espírito todo-poderoso que os missionários chamam «Deus» e de quem nós não seríamos senão uma miserável reprodução, mas sim do pequeno espírito que permite ao homem pensar.
Quando, daqui, olho para a mangueira que está atrás da igreja, isso não é espírito, estou apenas a vê-la. Mas se me dou conta de que ela é mais alta do que a igreja, isso é espírito. Não basta, portanto, olhar para uma coisa; é preciso também tirar dela um saber.”

O Papalagi, Erich Scheurmann, Pocket



Lucian, tão frequentemente rápido, vivo, mordaz, imobiliza-se. Pela primeira vez, vê-se a si próprio no desenho que supõe ser da mão de Igniatius — e que Igniatius, que lho trouxe… acredita ser da mão de Lucian…
— Não faz assim tanto tempo que nos encontramos… Ele diz-me que os encontrou numa galeria… mas devo confessar-lhe que duvido muito disso… A minha opinião é que ele é o autor…
Mas… como poderia ele ter feito todos estes desenhos em tão pouco tempo?
Félix retoma a palavra, a pensar e a murmurar… como para si mesmo.
— É a sua semelhança que acaba… enfim… de ser revelada por ele… numa espécie de silêncio que já não era vazio, mas profundidade.
Félix e Lucian continuavam a examinar o desenho à luz oblíqua do candeeiro, uma luz quase crua que, por um estranho acaso, acentuava os traços do rosto esboçado no papel ao ponto de lhe dar um ar mais vivo, como se a linha em si respirasse.
— Félix… este rosto…
Félix ergueu os olhos, vivo, atento, pronto a acolher a confissão. Lucian inspirou, e a sua voz subiu um tom:
— Este rosto… não se parece apenas comigo.
Félix franziu ligeiramente o sobrolho, intrigado.
— Como assim?
Lucian passou a mão pela testa, como um homem que abandona uma pele demasiado apertada.
— Parece-se… tanto, se não mais… com o Igniatius.
Seguiu-se um silêncio tão nítido que se poderia pensar que o ar acabara de sair da sala.
Félix ficou imóvel.
— Acha que se parece com o Igniatius? — disse, com uma voz que, desta vez, já não tinha a leveza habitual.
Lucian acenou com a cabeça.
— Sim. Não lho disse, e não sei porque é que não lho disse. Talvez porque não quisesse admiti-lo, talvez porque me assustasse. Mas aqui vai a verdade: da primeira vez que Don Carotte… quero dizer, Igniatius… me mostrou estes desenhos, tive a impressão desconcertante, quase estonteante, de que esse rosto… essa figura inclinada sobre as ilhas, a observar e a sofrer tempestades e vulcões… esse perfil que está sempre um pouco à margem… era ele tanto quanto eu.
Félix levantou-se bruscamente — o que, vindo dele, valia por um grito. Deu alguns passos pela sala, como se precisasse de abrir espaço em volta dessa frase que acabava de abrir uma brecha.
— Santo Deus, murmurou. Santo Deus… então isso quer dizer…


Lucian não disse nada, mas os seus olhos procuravam os de Félix, como um homem à beira de um precipício procura um ponto onde pousar o pé.
Félix voltou lentamente para a mesa, apoiou-se nela com os cotovelos e fixou os desenhos como se os visse pela primeira vez.
— Lucian… se o rosto se parece consigo… e com o Igniatius… então já não estamos no simples transfer. Já nem sequer estamos no “tu representas aquilo que me falta”.
Suspirou:
— Estamos na… sobreposição.
Lucian pestanejou.
— Sobreposição?
— Sim, disse Félix, e isso é infinitamente mais raro. É quando dois sujeitos, cada um a partir da sua margem, confundem um mesmo terceiro, um mesmo rosto simbólico, e ambos começam a habitá-lo. Como se, sem o saberem, viessem do mesmo lugar de falta. Como se fossem, um para o outro, a mesma silhueta esburacada que margeia o vazio.
Acrescentou, com uma intensidade quase dolorosa:
— Lucian… não é simplesmente que ele o vê.
Lucian sentiu um arrepio na nuca.
— Félix… acha que… que nós nos parecemos?
Félix sorriu — um sorriso triste, inquieto, admirado.
— Não sei se vocês se parecem, Lucian.
Pegou novamente no desenho.
— Veja: esta figura… não é totalmente o senhor, nem totalmente ele. É um entre-dois. Um rosto impossível. Um rosto entrançado a partir de duas solidões que procuram uma forma.
Pousou o desenho com uma lentidão estudada.
— E agora… ouça bem: o facto de este rosto ter aparecido no desenho dele e não no seu significa que é ele quem assumiu, para ambos, a função de revelação. Ele devolve-lhe uma imagem que nunca poderia ter produzido sozinho, mas que ele podia “tocar” porque viveu no puro falta.
Interrompeu-se.
Depois, com uma doçura violenta, quase siboniana:
— Lucian, não é ele que se parece consigo.
Lucian empalideceu.
Félix murmurou, como quem confia um segredo:
— E se esta figura… viesse de antes de si?
Lucian fechou os olhos.
Félix pousou-lhe suavemente a mão no ombro:
— Não é o Igniatius que inventa a vossa semelhança.
O silêncio volta a cair sobre a cena…
Lucian estendeu a mão, pegou delicadamente no desenho que Félix lhe estendia e aproximou-o um pouco mais de si, como para o evitar e enfrentá-lo ao mesmo tempo.
— É que ocupa, no imaginário dele, o mesmo espaço que ele ocupa no seu. Mas… pode acontecer que nele o senhor se reconheça, e que seja o senhor a parecer-se com uma figura que ele “desenterrou”…
— Onde a terá encontrado?
— Que sei eu… na sua mente… num lugar onde o senhor nunca olhou? Num silêncio que carrega sem ter palavras para ele?
Um vertigem atravessou Lucian — a vertigem de um homem que vê rasgar-se o pano da sua própria origem.
Félix voltou a falar em voz baixa, como se se dirigisse a si mesmo.
Lucian, até então petrificado, sentiu de súbito subir dentro de si uma onda, um mal-estar familiar e, ao mesmo tempo, uma necessidade irreprimível. O silêncio adensou-se, tornou-se quase sólido entre os dois.
E foi então, nesse silêncio esticado como um fio onde a mínima palavra poderia fazer tudo bascular, que Lucian murmurou, com uma voz baixa, quase estrangulada, como se falasse através de uma fenda que nunca soubera… nem ousara… olhar.