« Certas frases, certas passagens escritas logo após a adolescência parecem-me hoje o produto do ser que sou agora, formado pelos anos e pelas coisas.
Devo reconhecer que sou, sim, o mesmo que fui então. E, sentindo apesar de tudo que hoje me encontro muito avançado em relação ao que fui, pergunto-me onde está o progresso se eu já era o mesmo que sou agora.
Há em tudo isto um mistério que me diminui e me oprime.
Há poucos dias, um texto muito curto desse passado longínquo causou-me uma impressão desconcertante.
Recordo-me perfeitamente de que a minha preocupação, mesmo que relativa, com a bela linguagem não remonta a mais de alguns anos.
E encontrei no fundo de uma gaveta um texto muito mais antigo onde essa mesma preocupação aparece de forma muito marcada.
Positivamente, não me compreendi no desenrolar do meu passado: como pude avançar em direcção ao que já era?
Como me vejo hoje, se não soube ver-me outrora?
E tudo se mistura num labirinto onde me perco a mim mesmo, perdido nos meus próprios caminhos.
O meu pensamento perde-se em devaneio, e estou certo de já ter escrito o que escrevo neste momento.
Lembro-me.
E pergunto ao que em mim se imagina ser se, neste platonismo das impressões, não haverá outra anamnese, mais orientada, outra recordação de uma vida anterior que seria apenas a recordação desta vida…
De quem, meu Deus, sou eu assim espectador?
Quantos sou?
Quem é o eu?
Que é este intervalo entre mim e mim?»
Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, §213
Há momentos na análise em que o sujeito, sem sequer se dar conta, deixa cair de si, como uma peça de roupa demasiado pesada ou demasiado antiga, um dos nomes que o sustentam.
E a análise que segue, se conduzida com suficiente tacto, assemelha-se então ao que se sente quando caminhamos numa casa onde uma porta, habitualmente trancada, acaba de se abrir sozinha.
Hoje, Don Carotte… ou melhor, Igniatius, pois já não o posso chamar de outra forma nestas notas, deixou escorregar esse nome com a modéstia assustada, quase vertiginosa, de quem diz algo sem o reconhecer totalmente.
Esse nome, que parece mais antigo do que a sua própria memória, regressou-lhe aos lábios com aquela naturalidade incontrolada que Lacan chamaria “a irrupção do Outro no discurso do sujeito”.
O que me impressionou, o que tento fixar aqui, nestas páginas que, depois de escritas, não poderão mentir, é a forma como esse nome, mal pronunciado, reactivou nele a cena da tempestade.
Não a tempestade meteorológica, mas a cena primitiva em que os relâmpagos e os trovões não são senão a tradução imaginária de outra tempestade, mais íntima, mais humana: a de um casal de adultos cuja vida conjugal, feita de acessos e de abandonos, deve ter ressoado na sua infância como a versão humana das convulsões do céu.
Ao ouvir Igniatius falar da luz que se retirava lentamente do mundo como se temesse desiludir os objectos ao deixá-los, não pude deixar de pensar que essa luz tremeluzente, tímida, quase polida, foi talvez a primeira voz que ele ouviu dizendo: “Isto vai ser grave.”
E a tempestade, com o seu troar crescente e os seus relâmpagos que desn
vient soudain o que normalmente permanece velado, pareceu-me apenas a repetição — transposta para a natureza — de discussões parentais em que as vozes se elevam, se cortam, se chocam, se procuram, se perdem, gritam e gemem como fragmentos de tempestades quebradas.
A criança, incapaz de dar sentido às palavras dos adultos, não tinha senão os ruídos do céu para interpretar a violência do lar.
E é sem dúvida por isso que a natureza, nele, vestiu tão cedo os trajes do teatro parental.
Mas o que mais me tocou — e que, creio, constitui um dos centros da sua economia psíquica — é esse gesto, tão simples e contudo tão abissal, de se enroscar contra o burro.
Esse animal silencioso, esse terceiro sem palavra, essa presença de outra ordem, desempenhou para ele o papel de mediador: mediador de calor, de ritmo, de continuidade.
Quase me recriminei por ver tão claramente o que ele próprio ainda não vê, mas é difícil não imaginar o que esse animal representava: o boneco de peluche vivo, o “doudou” ampliado à escala de um corpo inteiro, a massa quente e tranquilizante que recolhe o medo e impede que ele se dissolva num tumulto que não lhe pertence.
Quando ele diz que o burro “ouvia por ele”, percebo algo como um gesto fundamental da criança: delegar a outro, um outro neutro, um outro sem julgamento, a tarefa de ouvir o que é demasiado perigoso ou demasiado proibido para ser ouvido directamente.
Aí também, Lacan veria a função da Coisa (das Ding), em torno da qual o sujeito se constrói como em torno de um núcleo de silêncio.
O burro torna-se a instância que, sem simbolizar, acolhe.
Tentei, com suavidade, fazê-lo ouvir os deslizamentos que a memória opera e que ele próprio pronuncia com tal leveza que se confundem: terra/mar/céu, pai/mãe/ela.*
Não para lhe impor uma explicação, mas para o convidar a sentir como a memória, quando se protege, desloca facilmente as palavras para significantes vizinhos, parecendo jogos de língua, mas que, de facto, reconduzem o sujeito às suas origens.
Quando ele admitiu que as vozes, aquelas que julgava vir do céu, se acalmavam às vezes depois de grandes detonações, senti como que uma fissura se abrindo na sua narração: uma brecha por onde poderia insinuar-se a possibilidade, ainda frágil, de uma cena primitiva que o seu psiquismo, em criança, teria transposto para a tempestade para não a ver directamente.
Uma cena em que a união e a ruptura dos pais, a sua luta e a sua reconciliação, eram percebidas como as manifestações de um mundo que se quebra e se recompõe.
O que é notável, e escrevo-o aqui para não esquece, é que nesta lembrança, o pequeno Igniatius está simultaneamente demasiado perto e demasiado longe:
demasiado perto para não ouvir, demasiado longe para compreender.
Resta-lhe assim ser a testemunha impotente, enroscado na palha, nesse cheiro de calor e frescura misturados, nesse refúgio onde o animal, talvez menos animal do que um terceiro absoluto, sustenta a criança na travessia de uma experiência que excede a sua capacidade de sentido.
Sinto que estamos num ponto de viragem.
O nome Igniatius surgiu; o animal foi reconhecido; a cena da tempestade começa a clarear.
Será agora preciso deixar que este significante — este magma de memórias, sensações, dor e doçura, se desenlace por si.
Não irei mais depressa do que ele, mas ousarei, na próxima sessão, regressar ao limiar daquela palha quente, onde a criança ouvia através de outro o que ainda não podia ouvir de si próprio.
Aí, estou quase certo, jaz o primeiro vulcão.
* Em francês, as palavras terre / mer / ciel (“terra / mar / céu”) são surpreendentemente próximas, na pronúncia, de père / mère / celle (“pai / mãe / aquela”).
Devido à sua sonoridade semelhante e à estrutura rítmica quase idêntica, podem facilmente confundir-se, permitindo que a memória da criança ou o inconsciente passe dos elementos da natureza para as figuras parentais sem o perceber

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