dimanche 14 décembre 2025

A origem dos desenhos


Uma dor longamente silenciosa começou, de súbito, a gritar. O grito, formado no ventre de Sang Chaud, subiu devagar, forçando o aperto da garganta antes de explodir pela boca aberta aos quatro ventos.



Igniatius entrou nesse dia no consultório com uma lentidão estranha, quase cerimoniosa.
Trazia nas mãos, envoltos em papel kraft e protegidos por papel de seda, três desenhos da galeria.

Lucian, ainda perturbado pela supervisão com Félix, percebeu logo que algo estava prestes a bascular. Igniatius não se sentou. Como um homem que não vem para falar mas para revelar, ficou de pé diante da poltrona, sem ousar ocupá-la.
Retirou lentamente o papel kraft. Três desenhos apareceram.

Primeiro, o que Lucian mostrara a Félix.
Depois, o desenho onde uma figura, sentada num trono escuro, observa a sua própria luta num cenário ondulante, turbilhonante, quase vegetal.
E o terceiro, que nem Lucian nem Igniatius compreenderam de imediato—onde um burro, nem heróico nem prestigioso, pousado sobre uma rocha quase ascética, parece estranhamente nobre enquanto tudo à volta é emaranhado e caótico.

Mais testemunha do que actor, paciente de uma resistência silenciosa, poderia, pensou Lucian, simbolizar uma presença interior… ou uma presença dentro da própria presença.
À beira do oceano, num repouso tranquilo, um mecanismo—quase uma máquina psíquica—marca o limite entre o sólido, o conhecido, e a imensidão movediça que simboliza o desconhecido.
Transmite uma impressão de calma e lucidez, instintiva e profunda, como uma força vital a atravessar um mundo complicado.

Sob a luz indirecta da lua, ondas enroladas sobre si mesmas desfazem-se regularmente numa praia invisível onde jaz um barco naufragado, o casco rompido, desfeito.
Fora da ilusão de um circo em aflição—trágico mas lúcido—seria ele um guia humilde e persistente, num terreno hostil, frente a um projecto humano decadente?
“Porque não foge das chamas que o cercam e iluminam?”, pergunta-se Lucian, antes de sentir um aperto nos dedos… e ficar mudo.
Algo na postura de Igniatius o deixava desconfortável.

Igniatius inspirou fundo.
— Tenho de lhe dizer algo, Lucian. Algo que nunca tinha posto em palavras, mas que me tem ocupado por semanas.

Colocou os desenhos entre ambos.

— Vi-os numa pequena galeria… sabe, aquela perto do porto, onde os quadros estão pendurados um pouco tortos, como se o vento, mesmo lá dentro, encontrasse maneira de soprar. Nunca lá ia, mas naquele dia, há meses, não sei porquê… entrei.

Sorriu levemente, um sorriso suspenso entre tristeza e lembrança.

— E vi-os. Esses desenhos. Essas silhuetas. Esses duplos. Essa figura a lutar contra formas que ondulam, se enrolam, o envolvem. Vê o movimento… as tensões… as camadas, as sobreposições?

Com os dedos, imitou as linhas que dançam e chicoteiam a imagem—linhas de vento, de serpentes, de algas, de fogo. Imagens de um mundo complexo, se não complicado.

— Aproximei-me. E então… senti algo. Não uma emoção simples. Um reconhecimento.

Apontou para a silhueta de barba triangular inclinada para trás na poltrona.

— Essa figura… sou eu. Ou pelo menos é aquilo que penso ver.

Lucian não reagiu.

— Mas depois olhei melhor, e algo se moveu na minha cabeça. Não era eu. Ou melhor, não era só eu. Era… outra pessoa. Alguém que eu conhecia sem ainda conhecer.

Os seus olhos encontraram os de Lucian.

— Era você.

Um silêncio profundo, quase rasgante, caiu entre ambos.

— Sim, Lucian. Vi-o naquela galeria antes mesmo de o conhecer. Ou melhor… vi nesses traços algo de si. A postura, a maneira como escuta inclinando a cabeça, como se tentasse captar um som que não existe ainda mas não pára de chegar.

Pegou no segundo desenho, o díptico onde duas silhuetas idênticas, de cada lado da poltrona, parecem surgir ou recuar, uma lendo, a outra a proteger-se de um sopro vindo do assento.

— E este… este é o pior. Duas figuras idênticas—dois você, dois eu, duas criaturas do mesmo gesto. Uma lê, a outra recua. E fiquei com medo. Medo verdadeiro. Porque já não sei quem é quem.

Lucian apertou os braços da cadeira.

Igniatius continuou.

— Então perguntei ao galerista: “Quem fez isto? Quem é o artista?” Disse-me que não sabia. Que os desenhos tinham sido deixados anonimamente. Que a assinatura era ilegível, como um nome apagado pelo próprio artista.

Fechou os olhos por um instante.

— Fiquei muito tempo diante dessas silhuetas. E quanto mais as olhava, mais me dizia: “Isto não é acaso.” Alguém desenhou isto para mim. Ou sobre mim. Ou comigo. Ou antes de mim.

Depois ergueu a cabeça.

— E quando o vi pela primeira vez… eu soube.

Não soube como se sabe uma verdade—
soube como se reconhece uma escrita já vista num sonho.

— A sua maneira de se mexer, de se sentar, até os seus silêncios… era isso. Era você nesses desenhos. Você… antes de você.

Lucian permaneceu imóvel, o olhar turvado.

E Igniatius murmurou, com a voz quase estrangulada:

— É por isso que acredito que o autor é você. Ou, se não for…

— E se não for…? Continue.

Igniatius fez um gesto vago, mas carregado de sentido.

— … então quem os fez conhecia-o melhor do que eu.

Aproximou-se mais da poltrona—sem se sentar—e disse lentamente uma frase que abriu um abismo:

— Lucian… se você já estava nestes desenhos antes de eu o conhecer… então talvez não tenha sido eu a encontrá-lo.

Colocou a mão sobre o papel.

— Talvez tenha sido você a encontrar—

Lucian empalideceu, incapaz de pronunciar a palavra.
Contornou-a:

— Talvez eu seja a sua personagem. Talvez Don Carotte, Igniatius, todas estas histórias, as ilhas, o burro, a tempestade… tenham nascido de um lugar em si. Um vazio. Um vazio que me chamou.

Deu um passo atrás, as mãos a tremer.

— Lucian… sou eu real? Ou sou aquilo que desenhou…?
Ou aquilo que desenhou sem saber?

E pela primeira vez desde o início das sessões, Lucian ficou sem palavras.
Sem voz.
Até o sorriso o abandonara.


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