lundi 1 décembre 2025

Resquícios de outra era

 

É aqui que outrora Igniatius, o Caminhante, gerava
Os seus passos errantes, o seu sopro e os seus medos sem clareza.
Aqui, onde o Escutante, numa frisa vazia,
Ouvia murmurar os espectros tímidos.
Aqui, onde o Feitor-de-Sombra, resguardado pelos cortinados,
Inventava mil vidas, mil rostos, mil ecos.
Aqui, onde três destinos, sob o fogo das estrelas,
Tentavam compreender-se através de mil véus.
Agora o circo, deserto, oferece-se ainda
Como um túmulo vivo que guarda e devora.
Mas a alma deste lugar, sob o pó em brasa,
Pulsa como um grande coração esquecido pelos deuses.

 

 

 Bem longe dali e fora do tempo, olhando bem nos olhos assustados de Lucian, Igniatius diz-lhe algo assim:
 
– Temos a sorte e o infortúnio de viver num universo paralelo do qual não podemos escapar sem a ajuda de um pensador-escriba que nos segura entre as mãos. Vivemos e morremos conforme a sua boa ou má vontade…
 
 Lucian, apanhado de surpresa, não sabe o que responder diante desse discurso todo impregnado de uma lucidez sombria e enérgica, no mínimo surpreendente e levemente agressiva. Uma agressividade cuja origem ele tem dificuldade em distinguir.
 
– O que se passa na cabeça do nosso autor? Só o podemos saber através dos textos que nos põem em cena… e mesmo assim… numa forma deformada pelas palavras e pela sua ordenação, pelas suas regras, por uma sintaxe mais ou menos harmoniosa que tenta, por vezes em vão, reflectir aquilo que há muito escapou da mente que pensa estar a criar-nos.
 
Igniatius, recolhido dentro de si, faz silêncio; e nesse silêncio ouve a voz que fora um dia a sua:
 
“Então, na noite negra onde o espaço adormece,
Um arrepio subiu da areia até às pegadas.
Nos degraus viram-se sombras claras a dançar,
Restos de uma outra era em que o circo era o mundo.
 
O menino do ilhéu sombrio, nesta noite sem fim,
Parecia reviver, pálido, no fundo deste destino.
Ri, corre, a sua voz rasga o vazio,
Como um raio perdido num céu demasiado límpido.
 
O Escutante avança, devagar, da sombra fria,
O olhar em brasa como a sombra de uma presa.
As vozes de outrora, que julgava desaparecidas,
Reatam os seus acordes sobre os seus lábios tensos.
 
E do fundo das coxias, a Sombra de dedos de giz,
O Feitor renascido varre os arrependimentos.
Ergueu um espelho: um rosto sem nome
Misturava várias frontes num único horizonte.”
 
 

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