vendredi 12 décembre 2025

Como um riacho

 

O PAI
 – A nossa realidade, senhor, não é nem de ontem nem de hoje: é de sempre!
O senhor acredita que pode nos criar, mas somos nós que o obrigamos a nos reconhecer.
Nós já existimos, senhor! E vivemos… mesmo que o senhor não queira nos ouvir.
 
O DIRETOR DA COMPANHIA
 – Mas afinal, o que é que o senhor quer de mim?
 
O PAI
 – A nossa tragédia!
Aquela que arde dentro de nós e que o senhor não pode mudar.
Pois uma vez nascidos da fantasia de um autor, temos uma vida própria, imutável,
que ninguém, nem mesmo aquele que nos gerou, pode apagar.
Luigi Pirandello – Seis Personagens à Procura de um Autor
 
 
 
 
 
 Sangue Quente inicia uma transformação espetacular. Ele se dirige a Ignatius sabendo que este não pode ouvi-lo.

— Sei o quanto você é surdo ao que lhe digo… pouco me importa isso; basta-me imaginar que você me escute… e já que estou nisso… farei como você… você será a minha criatura! Já viu alguma vez uma criatura criar o seu criador? Então? O jogo está decidido? Se a regra permanece a mesma… os jogadores mudam… e agora a bola foi lançada! Cuidado… é tempo de aprender o seu número antes de entrar em cena. Ouve os clamores… os pisoteios dos espectadores e as notas grosseiras da fanfarra? Fanfarão de nariz vermelho, você será Ignatius, e Lucian será o palhaço branco… e Félix, o diretor de longo casaco noturno, com as mãos e o rosto cobertos por luvas brancas. Sua mão direita, cheia de ternura e doçura, estende-se para ti, Lucian… e sua mão esquerda, dobrada atrás das costas, esconde o chicote. Cuidado, simples escriba tolo, para que ele não escreva nas tuas costas o que secretamente fomenta em tua mente. O circo, você sabe, está em constante desordem. Na poeira, tudo se monta e se desmonta. Ambos estão sobre as tuas costas, e Dom Cenoura cavalga sobre eles.

— Vê, Ignatius e companhia, como o mundo gira, se revira… e nos atravessa…

Num instante, Sangue Quente se transformou. Perdido está esse ventre-mundo… perdidas essas mudanças incessantes. Com os pés fincados no outro mundo, o espírito desperto ruminando questões aterradoras.

— Até onde podem suportar pobres encarnações serem os demônios insaciáveis de um autor que sonha com a exaustividade, meticulosamente, em nome da autoridade e da liberdade, sem consideração pelo condenado portador desse fardo? Escapar à dominação e à submissão: essa é a minha busca! E já que as imagens fazem nascer palavras, espero fazer nascer imagens por meio das palavras… E com isso, Sangue Quente, sem mais refletir e sem nenhuma experiência, pega um lápis e começa a desenhar. Ai do incrédulo e do ignorante: o saber está à porta. Ao menor sopro ou movimento, ele entra. Assim como a fé move montanhas, o pincel dá vida. Os cadernos de Sangue Quente, como um riacho ou uma poça em tempo de chuva, se enchem.

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