Fissura. A razão ergue muralhas; o imaginário acaba sempre por escapar por uma fissura…
E fissuras… não faltam.
O pedido, a recusa e o retrato
Félix, no seu gabinete, sentado diante de Lucian, depois de ter rodéado os desenhos como quem rodeia uma chama demasiado intensa, fechou bruscamente o caderno, e olhou para Lucian com uma decisão calma, quase grave.
— Tínhamos dito que era importante dizermos tudo um ao outro… Pois bem, não somos amantes de recordes, mas nesta história estamos a patinar há demasiado tempo… por isso digo-o claramente… preciso de o ver.
Lucian ergueu a cabeça.
— Ver quem?
— Igniatius… quem mais? Marque-lhe um encontro aqui. Falaremos os três.
Lucian empalideceu ligeiramente. O suficiente para que Félix o notasse. O seu fôlego quebrou-se como um fio demasiado esticado.
— Não creio que isso seja possível…
Apesar da lentidão na resposta, a intenção saiu demasiado depressa, demasiado nítida, demasiado seca. Era uma recusa que não se dizia no plano da razão, mas no da alma.
Félix teve um movimento de surpresa genuína, raro nele:
uma espécie de ligeiro recuo do tronco, um silêncio mais redondo do que os outros.
— Não! repetiu Félix. Porque razão não pode ser possível?
Lucian permaneceu imóvel, como se não tivesse ouvido a sua própria voz.
— Não é… possível, prefiro não… repetiu ele, gaguejando.
— Não é possível? Félix inclinou a cabeça. Lucian, isto não é uma questão de possibilidade ou de preferência. É uma questão de necessidade clínica. Está… preso em qualquer coisa.
Lucian desviou o olhar, gesto quase infantil, quase culpado.
— Eu… eu não posso, murmurou. Não agora.
Félix levantou-se, deu alguns passos, depois voltou para diante de Lucian.
— Lucian. Tem medo de alguma coisa. Mas de quê?
Lucian não respondeu.
Então, como se tivesse preparado o gesto desde o início,
ou como se finalmente se resignasse a mostrar aquilo que escondia, Lucian procurou dentro da pasta e tirou um papel dobrado. Um retrato. Desdobrou-o lentamente, com um cuidado quase litúrgico.
Félix inclinou-se.
No papel: o rosto de um homem, extremamente bem desenhado,
o olhar ligeiramente inclinado, uma expressão quase dolorosa, quase suave, quase… dupla.
O rosto de Igniatius… ou de Lucian…
… ou de outro, de um entre-dois, de um rosto impossível.
Um rosto ao mesmo tempo exacto e indecidível, como se as duas silhuetas que Félix tinha visto nos desenhos se tivessem misturado aqui de forma ainda mais radical.
Félix demorou alguns segundos a falar.
— Mas isto é… são os dois, Lucian.
Virou-se para ele, com os olhos dilatados.
— Este rosto… é o seu. E o de Igniatius. Ao mesmo tempo. Vejo os dois. É… fascinante. Perturbador. Mas como… como não vê-lo?
Lucian fitou o retrato com uma ausência devastadora.
— Eu não vejo nada disso… disse ele com uma voz quase branca.
— Como assim, não vê?
— Vejo Igniatius. Só isso. É ele. Apenas ele.
A frase atingiu Félix como um golpe no plexo solar.
— Lucian… murmurou Félix. Não vê que este rosto… também é o seu?
Lucian abanou a cabeça lentamente, como um homem que recusa uma evidência
não por resistência, mas por cegueira.
— Não.
Félix ergueu o retrato, aproximou-o do rosto de Lucian, colocou os dois perfis a poucos centímetros um do outro, como um espelho humano.
— Olhe. Olhe bem.
Lucian permaneceu imóvel.
— Não vejo semelhança, disse ele.
Com uma sinceridade desconcertante.
Uma sinceridade que não era mentira, mas puro recalcamento.
Um arrepio percorreu Félix.
Um frio — clínico, quase profético.
— Não vê… o que Igniatius vê.
— Não.
— E não vê… o que eu vejo.
— Não.
Félix deu um passo atrás.
— Então estamos perante algo mais forte do que a transferência.
Mais forte do que a simbolização.
— Mais forte do que a memória?
— Mais forte do que a simbolização… mais forte do que a memória.
O supervisor, habitualmente tão estável, tão enraizado, parecia abalado.
— Lucian… quando um sujeito não reconhece o seu próprio rosto… num retrato que também se assemelha ao do outro… isso significa algo simples e terrível… que partilha com Igniatius… um ponto cego.
Acrescentou, quase como uma sentença:
— E esse ponto cego… é o que faz com que não possam encontrar-se os três.
Lucian exalou:
— Porque me perderia?
— Não, disse Félix. Porque se encontraria.
E ainda não está preparado.
Félix pousou o retrato sobre a mesa, os dois rostos sobrepostos.
— Enquanto não vir a semelhança… ela governa-o.
Terá de a enfrentar. Mas não hoje.
A sala ficou silenciosa, como se as paredes tivessem compreendido que um segredo acabara de ser desdobrado.

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