— Então, se é o homem que passa… o que acontece à memória? O que acontece às nossas lembranças? Ficam algures, ou também passam?
Lucian acenou.
Sorriu. Esse tipo de pergunta agradava-lhe, porque vinha da experiência, não de um conceito. Inclinou-se ligeiramente para a frente, desviando o olhar e lançando uma rápida vista de olhos por detrás de si, antes de fixar Ignatius como quem vai revelar algo secreto, mas também muito simples.
– Ah… a memória. Sim, faz bem em trazê-la ao jogo.
Porque a memória é precisamente aquilo que joga entre o que passou e o que continua vivo. É um entre-tempo. Guarda e transforma; não congela. Pensamos que a memória conserva. Não: recria. Cada vez que recordamos, reencenamos a cena, deslocando-a um pouco. Reintroduzimos jogo entre o acontecimento e nós. É por isso que duas pessoas que viveram a mesma situação nunca a recordam da mesma forma: cada uma fez a sua passagem. Se a memória fosse apenas armazenamento, estaria morta.
– Seria um museu de cera, preso num tempo que já não existe…
– Exactamente… Mas a memória viva é a que reinventa. Reencena o passado no presente, ajustando-o ao que nos tornámos. É uma memória em acto, não em pedra.
– Então… quando dizemos que é o homem que passa, isso não significa que desapareça.
– Não, ele deixa traços, dobras, intervalos.
E é aí, nesses intervalos, que a memória trabalha.
– Mantém a passagem aberta…
– Justamente… Veja, quando perdemos alguém, pensamos que o laço terminou. Mas na verdade, o laço passa de outra maneira.
– Por vezes sente-se num gesto, numa palavra, num sonho… ou numa imagem!
– Exactamente — algo que reencena o laço sem o repetir. Já não é a mesma presença, mas também não é ausência.
É o entre-dois da lembrança e do vivo.
É aí que a memória opera: na passagem simbólica entre o desaparecido e o presente.
E depois há a memória colectiva.
Uma sociedade também passa.
Passa de um quadro para outro, de um jogo para outro. E aquilo a que chama “memória” é a maneira como reencena as suas feridas e as suas glórias.
Às vezes, já não sabe jogar: repete, rumina, bloqueia.
– E nesse caso, que fazer?
– É preciso reabrir o jogo, devolver passagem, permitir que algo antigo circule de outra forma. É isso, fazer memória: fazer circular o antigo no presente sem o aprisionar. E, se quiser, podemos dizer que a memória é o que impede a passagem de ser esquecimento puro — mas também o que impede a memória de ser repetição pura.
É o entre-dois do mesmo e do esquecimento, da lembrança e da vida.
Portanto… o tempo não passa, o homem passa, e no seu passar deixa um fio — um pouco de memória, um pouco de jogo. Esse fio poderá ser retomado por outros, ser retecivelado, e assim a vida transmite-se. Não como coisa que se guarda, mas como movimento que se reencena.
Calou-se.
– Como um movimento que se reencena… Lucian, posso fazer-lhe duas perguntas?
– Faça favor…
– Diga-me… o que quis dizer ontem… quando falou de consulta? E… porque é que não me respondeu acerca dos desenhos?
vendredi 31 octobre 2025
O desaparecido e o presente
The departed and the present
— But then, if it is man who passes… what becomes of memory? What becomes of our memories? Do they remain somewhere, or do they pass as well?
Lucian nodded.
He smiled. This kind of question, he liked — because it came from life, not from a concept. He leaned slightly forward, briefly looking behind him before fixing his gaze on Ignatius, as though about to reveal something both secret and very simple.
– Ah… memory. Yes, you are right to bring it into the play.
Because memory is precisely what plays between what has passed and what continues to live. It is a temporal in-between. It keeps and transforms; it does not freeze. We believe memory preserves. No: it recreates. Each time we remember, we replay the scene, shifting it slightly. We restore playfulness between the event and ourselves. That is why two people who lived the same moment never remember it in the same way: because each has made their own passage. If memory were only storage, it would be dead.
– It would be a wax museum, frozen in a time that no longer is…
– Exactly… But living memory is the one that reinvents. It replays the past in the present, adjusting it to what we have become. It is memory in act, not in stone.
– So… when we say it is man who passes, it does not mean he vanishes.
– No, he leaves traces, folds, gaps.
And it is there, in those gaps, that memory works.
– It keeps the passage open…
– Precisely… You see, when we lose someone, we think the bond is broken. But in truth, the bond passes differently.
– Sometimes one feels it in a word, a gesture, a dream… or an image!
– Indeed — something that replays the bond without repeating it. It is no longer the same presence, but neither is it absence.
It is the in-between of memory and life.
This is where memory operates: in the symbolic passage between the one who is gone and the present.
And then there is collective memory.
A society, too, passes.
It moves from one frame to another, from one play to another. And what it calls “memory” is its way of replaying its wounds and its glories.
Sometimes it forgets how to play: it repeats, ruminates, blocks.
– In that case, what should be done?
– We must reopen the play, reintroduce passage, allow something old to circulate differently. That is what it means to remember: to let the old circulate in the present without imprisoning it. And if you wish, we might say that memory is what prevents passage from becoming pure forgetting — but also what prevents memory from becoming pure repetition.
It is the in-between of sameness and forgetting, of recall and life.
So… time does not pass; man passes. And in his passing, he leaves a thread — a bit of memory, a bit of play. That thread may be taken up by others, rewoven, and in this way life transmits itself. Not as something one keeps, but as a movement one replays.
He fell silent.
– As a movement one replays… Lucian, may I ask you two questions?
– Please do…
– Tell me… what did you mean yesterday… when you spoke of consultation? And… why did you not answer me about the drawings?
Le disparu et le présent
— Mais alors, si c’est l’homme qui passe… que devient la mémoire? Que deviennent nos souvenirs? Est-ce qu’ils restent quelque part, ou bien passent-ils eux aussi ?
Lucian hoche la tête.
Il sourit. Ce genre de question, il l’aime, parce qu’elle vient du vécu, pas d’un concept.
Il se penche un peu vers l’avant, détournant le regard en regardant brusquement derrière lui avant de fixer Igniatius comme s’il allait lui confier quelque chose de secret, mais aussi de très simple.
– Ah… la mémoire. Oui, vous avez raison de la faire entrer dans le jeu.
Parce que la mémoire, c’est justement ce qui joue entre ce qui a passé et ce qui continue de vivre. C’est un entre-deux du temps. Elle garde et elle transforme, elle ne fige pas. On croit que la mémoire conserve. Non: elle recrée. À chaque fois qu’on se souvient, on rejoue la scène, on la déplace un peu. On remet du jeu entre l’événement et nous. C’est pour ça que deux personnes qui ont vécu la même chose ne s’en souviennent jamais pareil: parce que chacune a fait son passage. Si la mémoire n’était qu’un stockage, elle serait morte.
– Ce serait un musée de cire, figé dans un temps qui n’est plus…
– C’est cela… Mais la mémoire vivante, c’est celle qui réinvente. Elle rejoue le passé dans le présent, elle l’ajuste à ce que nous sommes devenus.
C’est une mémoire en acte, pas en pierre.
– Alors… quand nous disons que c’est l’homme qui passe, ça ne veut pas dire qu’il s’efface.
– Non, il laisse des traces, des plis, des écarts.
Et c’est là, dans ces écarts, que la mémoire travaille.
– Elle garde le passage ouvert…
– On le sent parfois dans un mot, un geste, un rêve… ou une image !
C’est là que la mémoire opère : dans la passe symbolique entre le disparu et le présent.
Et puis il y a la mémoire collective.
Une société aussi, ça passe.
Elle passe d’un cadre à un autre, d’un jeu à un autre. Et ce qu’elle appelle « mémoire », c’est sa façon de rejouer ses blessures et ses gloires.
Parfois, elle ne sait plus jouer : elle répète, elle ressasse, elle bloque.
– Il faut alors rouvrir le jeu, remettre du passage, permettre que quelque chose d’ancien circule autrement. C’est ça, faire mémoire: faire circuler l’ancien dans le présent sans l’enfermer. Et si vous voulez, on peut dire que la mémoire, c’est ce qui empêche le passage d’être pur oubli. Mais c’est aussi ce qui empêche la mémoire d’être pure répétition.
C’est l’entre-deux du même et de l’oubli, du souvenir et de la vie. Donc… le temps ne passe pas, l’homme passe, et dans son passage, il laisse un fil, un peu de mémoire, un peu de jeu. Ce fil, d’autres pourront le reprendre, le retisser, et c’est ainsi que la vie se transmet. Non pas comme une chose qu’on garde, mais comme un mouvement qu’on rejoue.
jeudi 30 octobre 2025
Memória
— O que é a memória? O objecto-memória, se existir…
– Ah… excelente pergunta. Bela, até.
Porque toca aquilo que há de mais vivo: todos falamos de memória, mas quando tentamos agarrá-la, ela escapa-se. E ainda bem — a memória não foi feita para ser capturada.
– Para que serve?
– Serve para jogar. Portanto, se me pede, enquanto ser racional, para definir o “objecto-memória”… eu dir-lhe-ia primeiro, como diria Daniel Sibony: não há objecto.
– Então o que há?
– Há uma relação. A memória não é uma coisa que se possui; é um jogo de diferenças entre traços. Um sistema de diferenças que mantém um vínculo sem fixar o conteúdo.
Na matemática — veja — temos estruturas, conjuntos, relações. Pois bem, a memória é uma estrutura viva de relações entre traços.
A c não é um depósito de traços, mas a ligação desses traços, a forma como jogam entre si — e também o espaço onde esses traços continuam a deslocar-se, a iluminar-se uns aos outros.
Se eu tivesse de ser esquemático:
A memória é o conjunto (M) dos traços (t₁, t₂, …, tₙ).
– Perdoe a minha ignorância, mas não conheço este tipo de linguagem…
– E o que importa não é cada traço, mas os intervalos (eᵢⱼ = tᵢ − tⱼ). São esses intervalos que fazem a memória: abrem um espaço simbólico onde o passado permanece em jogo.
É por isso que a memória não é um registo. Um computador regista; ele tem armazenamento, não memória.
A memória humana esquece para poder lembrar. Apaga para dar forma. Retém deixando escapar. Cria vazios para que algo possa regressar.
Então, se procuramos uma definição “racional”, é preciso aceitar que o racional não exclui o jogo. A memória é um espaço de iteração viva: em cada evocação, ela reencena aquilo que pretende guardar. É uma função dinâmica, não um conteúdo fixo.
E é aí que matemática e psicanálise se encontram, veja: uma equação é uma relação entre termos que se podem mover; uma lembrança é igual — uma relação que se pode jogar de outra maneira.
A memória é o pôr-em-jogo do passado no presente.
– Então o “objecto-memória”…
– Eu diria: não é um objecto, é uma passagem.
Um lugar de trânsito. Um lugar onde o tempo se dobra, onde os traços trocam de lugar.
Um lugar que nos permite ser contínuos sem sermos idênticos.
É o que faz com que, mesmo quando tudo muda, algo permaneça — mas esse algo é precisamente o movimento.
Portanto, não, a memória não é uma caixa.
É uma geometria do entre-dois: entre o que foi e o que é, entre o traço e o vivo.
E talvez seja a mais bela invenção humana: saber manter juntos o que já não existe e o que ainda não existe.
Faz uma pausa, olha para Ignatius.
— Veja, a memória é como o amor: quando tenta transformá-la num objecto, ela escapa-lhe.
Mas enquanto a deixa jogar, ela faz-o existir.
Ignatius sorri. O tom acalma. Percebe-se que Lucian acaba de dar uma definição — sim — mas uma definição viva, à sua maneira: pela passagem, pelo jogo, pelo entre-dois.
– Diga-me, Ignatius, creio que está na altura de esclarecermos certas coisas…
– Do que fala?
– Da nossa relação.
– Esse entre-dois…
– Como o definiria?
– Está hoje particularmente misterioso…
Um observador atento veria Ignatius em equilíbrio precário numa corda tão instável quanto ele próprio.
– Sabe bem, Lucian… somos amigos…
Uma leve hesitação na voz… rapidamente substituída por uma ansiedade crescente.
– Parece-me que, há já algum tempo, a sua memória lhe tem pregado partidas, Ignatius. Ter-se-á esquecido do motivo pelo qual estamos aqui… no meu consultório?
Lucian insiste nessa última palavra. O suficiente para deixar Ignatius sem voz…
Memory
— What is memory? The memory-object, if such a thing exists…
– Ah… a very good question. A beautiful one, even.
Because it touches what is most alive: we all speak of memory, yet when we try to grasp it, it slips away. And that is fitting — memory is not meant to be seized.
– What is its use?
– It is made to play. So if you ask me, as a rational being, to define the “memory-object”… I would first say, like Daniel Sibony would: there is no object.
– Then what is there?
– There is a relation. Memory is not a thing one possesses; it is a play of differences between traces. A system of differences that maintains a link without fixing the content.
In mathematics, you see, we have structures, sets, relations. And memory is a living structure of relations between traces.
Memory is not a store of traces but the linking of those traces, the way they play among themselves — and also the space where those traces continue to shift, to illuminate one another.
If I were to be schematic:
Memory is the set (M) of traces (t₁, t₂, …, tₙ).
– Forgive my ignorance, but I am unfamiliar with that kind of language…
– And what matters is not each trace, but the differences (eᵢⱼ = tᵢ − tⱼ). These gaps make memory: they open a symbolic space where the past remains in play. That is why memory is not a recording. A computer records; it has storage, not memory.
Human memory forgets in order to remember. It erases to give form. It retains while letting go. It creates voids so that something may return.
Thus, if we want a “rational” definition, we must already accept that reason does not exclude play. Memory is a space of living iteration: each recall replays what it claims to keep. It is a dynamic function, not a stable content.
And it is here that mathematics and psychoanalysis meet, you see: an equation is a relation between terms that can move; a memory is the same — a relation one can replay differently.
Memory is the putting-into-play of the past in the present.
– Then the “memory-object”…
– I would say: it is not an object; it is a threshold.
A place of passage. A place where time folds, where traces exchange.
A place that allows us to remain continuous without remaining identical.
It is what ensures that even when everything changes, something holds — but that something is precisely movement itself.
So no, memory is not a box.
It is a geometry of the in-between: between what was and what is, between trace and life.
And perhaps it is the most beautiful invention of the human: the ability to hold together what no longer exists and what does not yet exist.
He paused, looked at Ignatius.
— You see, memory is like love: when you try to turn it into an object, it escapes you.
But as long as you let it play, it makes you exist.
Ignatius smiled. The tone settled again. One could feel that Lucian had indeed given a definition — but a living definition, in his way: through passage, play, and the in-between.
– Tell me, Ignatius, I believe it is time we clarified certain matters…
– Of what are you speaking?
– Of our relationship.
– This in-between…
– How would you define this in-between?
– You sound quite mysterious…
An attentive observer might notice that Ignatius feels himself perched in precarious balance on a tightrope no less unstable.
– You know it well, Lucian… we are friends…
A subtle doubt can be heard in his voice… quickly followed by a rising anxiety.
– It seems to me that, for some time now, your memory has been playing tricks on you, Ignatius. Have you forgotten why we are here… in my consulting room?
Lucian places particular emphasis on this last word. Enough to render Ignatius silent…
Mémoire
Paul Valéry
– Ah… très bonne question. Très belle, même.
Parce qu’elle touche à ce qu’il y a de plus vif: on parle tous de mémoire, mais quand on veut la saisir, elle se dérobe. Et cela tombe bien, la mémoire n’est pas faite pour être saisie.
– Elle est faite pour jouer. Alors, si vous me demandez, moi, en tant qu’être rationnel, de définir l’« objet-mémoire »… je vous dirais d’abord, comme le dirait Daniel Sibony: il n’y a pas d’objet.
– Il y a un rapport. La mémoire, ce n’est pas une chose qu’on possède, c’est un jeu d’écarts entre des traces. Un système de différences qui maintient un lien sans fixer le contenu.
En mathématiques, voyez-vous, on a des structures, des ensembles, des relations. Eh bien, la mémoire, c’est une structure vivante de relations entre des traces.
La mémoire n’est pas un stock des traces, mais la mise en relation de ces traces, leur façon de jouer entre elles, et c’est aussi l’espace où ces traces continuent à se déplacer, à s’éclairer l’une l’autre.
Si je devais être schématique:
La mémoire, c’est l’ensemble ( M ) des traces ( t_1, t_2, …, t_n ).
– Et ce qui compte, ce n’est pas chaque trace, mais les écarts ( e_{ij} = t_i - t_j ). Ce sont ces écarts qui font mémoire: ils ouvrent un espace symbolique où le passé reste en jeu. C’est pour cela que la mémoire n’est pas un enregistrement. Un ordinateur enregistre; il n’a pas de mémoire, il a du stockage. La mémoire humaine, elle, oublie pour se souvenir. Elle efface pour donner forme. Elle retient en laissant filer. Elle crée des vides pour que quelque chose puisse y revenir. Donc, si on cherche une définition « rationnelle », il faut déjà accepter que le rationnel n’exclut pas le jeu. La mémoire est un espace d’itération vivante: à chaque rappel, elle rejoue ce qu’elle prétend garder. C’est une fonction dynamique, pas un contenu stable.
Et c’est là que mathématiques et psychanalyse se rejoignent, vous voyez: une équation, c’est un rapport entre des termes qu’on peut déplacer; un souvenir, c’est pareil, c’est un rapport qu’on peut rejouer autrement.
La mémoire, c’est la mise en jeu du passé dans le présent.
– Alors, l’«objet-mémoire»…
– Je dirais: ce n’est pas un objet, c’est un lieu de passage.
Un lieu où le temps se plie, où les traces s’échangent.
Un lieu qui nous permet d’être en continuité sans être identiques.
C’est ce qui fait que, même quand tout change, quelque chose tient, mais ce quelque chose, c’est justement le mouvement lui-même.
Donc non, la mémoire n’est pas une boîte.
C’est une géométrie de l’entre-deux: entre ce qui fut et ce qui est, entre la trace et le vivant.
Et c’est peut-être la plus belle invention de l’humain: savoir faire tenir ensemble ce qui n’existe plus et ce qui n’existe pas encore.
Il marque une pause, regarde Ignatius.
— Vous voyez, la mémoire, c’est comme l’amour: quand vous essayez d’en faire un objet, il s’échappe.
Mais tant que vous le laissez jouer, il vous fait exister.
mercredi 29 octobre 2025
Time (english translation)

English Translation
– Dear Lucian, something intrigues me...
– Tell me, Ignatius... I’m listening.
– Could you, in your own way, expand upon the famous phrase: time passes?
– No... it is man who passes. Yes, it’s a beautiful phrase, isn’t it, Ignatius?
– Yes... “Time passes.” People often say that. As if time were a river, and we, little boats upon it.
– But… no. It is not time that passes — it is us. It is man who passes...
– Through time?
– Yes, but also... and above all, through himself. Time itself does not pass. Time is — it plays.
– Plays? What kind of play?
– As my friend Daniel Sibony says: a play of distances between a before and an after.
What passes is our being, our trace, our breath. Time does not flow; it holds the gap between what is no longer and what is not yet. And it is we who “cross” that gap, who make the passage.
– Are we then playing a game?
– Time, you see, is like an empty stage. It is not the stage that passes, but the actor... the actors. The stage remains; it welcomes.
– Then the world, if I follow what you say, would be a stage?
– You see, what moves is the body, the voice, the gesture, the desire. And when one actor leaves, another enters; the stage is always there.
– No one has left!
– When the actor disappears — that is, when man ceases to play — we say, “time passes.” It’s a rather lazy way of saying that we’re afraid of passing ourselves. We cast onto time our own passing. But the truth is that we pass — and that is good. We are made to pass.
– If I understand correctly, one might say: to pass is to live... therefore, not to pass would be to die?
– Yes... but death is not the opposite of life.
– Then what is it?
– It is the limit that makes life capable of passing. If nothing passed, nothing would be alive.
And when people say, “Time flies, everything fades away,” they are really lamenting their own flight. They do not wish to see that it is we who change, who move, who lose and who find.
– But this passage, this slipping away — I’ve never observed it...
– It is what makes us human. Time is merely a name for that in-between of our passing. You see, time is a symbolic interval between two events, two breaths, two desires.
– Would it then be like a substance that flows?
– Time does not flow; it plays.
– As we do... but where does it play?
– It plays — as we do — between what comes and what goes. And it is up to us to inscribe ourselves there, to play our passage. So yes, time does not pass. Man passes — through time — as one crosses a field, or a dream.
And sometimes, one leaves a trace: a phrase, a gesture, a love — something that continues to play even when one is gone. And perhaps that is the dignity of passing: not to cling to the idea of enduring, but to know how to pass — with style, with presence, with play.
Not to suffer time, but to dance within it.
Time does not pass. Man passes — and in his passing, he opens a little meaning, a little space, a little interval. And then he departs — but the play, that rhythm, remains.
*Daniel Sibony, The Play and the Passage, Seuil
Tempo (tradução em português)
– Meu caro Lucian, há algo que me intriga...
– Diga-me, Ignatius... estou a ouvi-lo.
– Poderia, à sua maneira, desenvolver a famosa expressão: o tempo passa?
– Não... é o homem que passa. Sim, é bela, essa expressão, não é, Ignatius?
– Sim... “O tempo passa.” Diz-se muitas vezes. Como se o tempo fosse um rio e nós, pequenos barcos.
– Mas... não. Não é o tempo que passa, somos nós. É o homem que passa...
– Através do tempo?
– Sim, mas também... e sobretudo, através de si próprio. O tempo, esse, não passa. O tempo é — é jogo.
– Jogo? Que jogo?
– Como diz o meu amigo Daniel Sibony*: um jogo de distâncias entre um antes e um depois.
O que passa é o nosso ser, a nossa marca, o nosso sopro. O tempo não escorre: sustém o intervalo entre o que já não é e o que ainda não é. E somos nós que “atravessamos” esse intervalo, que fazemos a passagem.
– Então estamos a jogar?
– O tempo, veja, é como um palco vazio. Não é o palco que passa, mas o actor... os actores. O palco permanece; acolhe.
– Então o mundo, se entendo o que me diz, seria um palco?
– Veja, o que se move é o corpo, a voz, o gesto, o desejo. E quando um actor sai, outro entra; o palco está sempre lá.
– Ninguém saiu!
– Quando o actor desaparece, isto é, quando o homem deixa de representar, diz-se: “o tempo passa.” É uma maneira um pouco preguiçosa de dizer que temos medo de passar nós próprios. Projectamos sobre o tempo a nossa própria passagem. Mas a verdade é que somos nós que passamos — e ainda bem. Fomos feitos para passar.
– Se entendo bem, poder-se-ia dizer: passar é viver... logo... não passar seria morrer?
– Sim... mas a morte não é o contrário da vida.
– Então o que é?
– É o limite que torna a vida passante. Se nada passasse, nada seria vivo.
E quando se diz: “O tempo foge, tudo se vai”, na verdade lamentamos a nossa própria fuga.
Não queremos ver que somos nós que mudamos, que nos deslocamos, que perdemos e que encontramos.
– Mas essa passagem, esse deslizamento... nunca o observei.
– É isso que nos faz humanos. O tempo é apenas um nome para esse entre-dois da nossa passagem. Veja: o tempo é um intervalo simbólico entre dois acontecimentos, dois sopros, dois desejos.
– Seria como uma substância que corre?
– O tempo não corre; joga.
– Tal como nós... mas onde joga ele?
– Ele e nós jogamos entre o que vem e o que parte. E cabe-nos a nós inscrevermo-nos aí, jogar a nossa passagem.
Portanto, sim, o tempo não passa. É o homem que passa, no tempo, como quem atravessa um campo, ou um sonho.
E por vezes deixa um rasto: uma frase, um gesto, um amor — algo que continua a jogar mesmo quando já não estamos.
E talvez seja essa a dignidade da passagem: não se agarrar à ideia de durar, mas saber passar com estilo, com presença, com jogo.
Não sofrer o tempo, mas dançar dentro dele.
O tempo não passa. É o homem que passa, e, na sua passagem, abre um pouco de sentido, um pouco de espaço, um pouco de entre-dois.
E depois vai-se embora... mas esse jogo, esse batimento, permanece.
Temps
mardi 28 octobre 2025
Teatro (versão em português)
– Talvez tenha sido necessário.
A imagem funciona como um palco onde se desenrola algo que torna o nosso trabalho...
– ... menos abstracto!
– Exactamente... Sabe, hoje fala-se muito de identidade. As pessoas querem saber quem são, de onde vêm, a que grupo pertencem.
– Quem é o autor desses desenhos?
– Pois eu digo muitas vezes: o que importa não é tanto de onde vimos, mas por onde passamos. Porque nunca vimos de um único lugar. Como diz o meu colega Daniel Sibony, nós passamos de um lugar para outro. E é aí, nessa passagem, que algo se cria.
É isso o entre-dois.
O entre-dois não é um vazio. Não é uma hesitação mole entre duas posições. É um espaço vivo, vibrante, onde se joga.
Sabe, numa porta, deixa-se sempre um pouco de jogo, caso contrário, ela encrava.
Pois bem, na vida é o mesmo: se suprimirmos o jogo, se tudo se cola, tudo se bloqueia, já nada passa.
– O que chama… o jogo?
– O jogo é o que permite à vida circular.
Porque é aí que se inventa: entre as palavras, entre as línguas, entre as pessoas.
É aí que se descobre que não somos um bloco identitário, mas um jogo de distâncias, uma passagem de vida.
Veja o teatro. O actor interpreta um papel, mas não se confunde com ele.
Há sempre um espaço entre ele e a personagem — e é precisamente aí que reside a arte, a verdade do jogo.
Se ele fosse totalmente a personagem, enlouqueceria; se estivesse totalmente desligado dela, seria frio, mecânico.
O jogo é esse entre-dois entre o actor e o papel — e a vida é igual: estamos sempre um pouco entre o que somos e o que representamos.
E depois, sabe, há o amor.
O amor também é um entre-dois.
Não é fusão — a fusão é a morte do jogo.
Também não é separação total, porque aí já não há ligação.
É esse movimento entre dois seres que procuram manter-se distintos, ao mesmo tempo que se encontram.
O amor é um jogo de distâncias tensas, um batimento: toco-te sem te tomar; chegas a mim sem me possuir.
É frágil, é arriscado, mas é vivo.
O entre-dois é também o lugar do desejo.
O desejo nasce da distância, não da posse.
E o desejo é o que nos põe em movimento, o que nos impele a atravessar.
Por isso, quando queremos preencher todos os intervalos, prever tudo, fixar tudo, matamos o jogo, matamos o desejo — tornamo-nos injogáveis.
Gosto muito dessa palavra: injogável.
Há vidas injogáveis, casais injogáveis, políticas injogáveis.
– Porquê?
– Porquê? Porque se fechou o jogo.
Porque se quis que houvesse um só sentido, uma só verdade, um só caminho.
Mas a vida não é uma demonstração.
É um movimento de distâncias, uma série de passes.
Veja o futebol: fala-se de passe, não é? — é o que faz circular, o que liga sem colar.
Na psicanálise, também se fala da passagem: o momento em que algo passa do sintoma à palavra, da experiência ao pensamento.
E na vida, há também essa passagem — esse momento em que se pode jogar de outro modo, em que se abandona um quadro para inventar outro.
Esse momento é raro, mas é aí que a vida pulsa verdadeiramente.
Portanto, estar no entre-dois não é estar perdido.
É estar em movimento.
É saber que o que faz manter tudo, não é a rigidez, é a tensão.
E que se pode ser si mesmo, mas em jogo, não em bloco.
É uma ética da passagem: não se agarrar a um lado, nem rejeitar o outro, mas jogar o intervalo que os liga.
O entre-dois é o lugar onde se fala, onde se deseja, onde se cria.
É aí que o humano se fabrica.
E talvez o gesto mais belo, hoje, seja devolver o jogo ao mundo — tornar as vidas novamente jogáveis.
Isso é talvez o verdadeiro teatro da existência: um palco entre duas margens, onde se aprende a passar, a arriscar, a jogar.
Theatre (english version)
– It may have been necessary. The image acts like a stage where something unfolds — something that makes our work...
– ...less abstract!
– Exactly... You know, people talk a lot about identity these days. Everyone wants to know who they are, where they come from, what group they belong to.
– Who’s the author of these drawings?
– But I often tell myself: what matters is not so much where we come from, but where we pass through. Because we never come from just one place. As my colleague Daniel Sibony says, we move from one place to another, and it’s there, in that passage, that something is created. That’s what I call the in-between.
The in-between is not a void. It’s not a vague hesitation between two positions. It’s a living, vibrating space — a space of play. You know, when you build a door, you always leave a bit of play in it; otherwise, it jams.
Well, life is the same: if you remove all play, if everything sticks together, everything gets stuck — nothing passes through anymore.
– What do you mean by... play?
– Play is what allows life to circulate.
Because that’s where invention happens: between words, between languages, between people.
That’s where we discover that we’re not solid blocks of identity, but a play of distances, a passage of life.
Look at theatre: the actor plays a role, but doesn’t become it. There remains a space between him and the character, and it’s precisely there that art resides, that the truth of play emerges.
If he were completely his character, he’d go mad; if he were totally detached, he’d be cold, mechanical.
Play is that in-between between actor and role — and life is the same: we are always somewhere between what we are and what we play.
And then, you know, there’s love.
Love, too, is an in-between. It’s not fusion, fusion is the death of play.
Nor is it total separation, because then there’s no bond at all.
It’s that movement between two beings who seek to remain distinct while still joining one another.
Love is a play of stretched distances, a pulse: I touch you without taking you; you reach me without possessing me.
It’s fragile, it’s risky, but it’s alive.
The in-between is also the place of desire.
Desire is born of distance, not possession.
And desire is what sets us in motion, what urges us to cross.
So, when we try to fill every gap, to predict everything, to fix everything, we kill play, we kill desire, we make ourselves unplayable.
I like that word, unplayable. There are unplayable lives, unplayable couples, unplayable politics.
– Why?
– Why? Because the play has been closed.
Because we’ve wanted there to be only one meaning, one truth, one way.
But life isn’t a demonstration.
It’s a movement of distances, a series of passes.
You see, in football we talk about a pass: it’s what keeps the ball moving, what connects without sticking.
In psychoanalysis, there’s also the pass: the moment when something passes from symptom to speech, from lived experience to thought.
And in life, there’s that pass too, that moment when we can play differently, when we leave one frame to invent another.
That moment is rare, but it’s where life truly happens.
So, being in the in-between isn’t being lost. It’s being in motion.
It’s knowing that what holds things together isn’t rigidity, but tension.
That one can be oneself, but in play, not as a block.
It’s an ethics of passage: not clinging to one side, not rejecting the other, but playing the distance that connects them.
The in-between, that’s where things speak, where they desire, where they create.
That’s where the human is made.
And perhaps the most beautiful gesture today is to give the world back its play, to make life playable again.
That, perhaps, is the true theatre of existence: a stage stretched between two edges, where we learn to pass through, to take risks, to play.
Théâtre
lundi 27 octobre 2025
O trono

Um novo desenho foi pendurado na parede do gabinete de Lucian.
Ignatius, ora de sobrolho franzido, ora com ar surpreendido, está sentado numa poltrona baixa. Segura a bengala — um pau vulgar que contrasta com a elegância do seu fato.
Lucian, ligeiramente afastado, fala em voz baixa.
Lucian
Ignatius, retomemos por um instante este desenho… o trono, a goela, a língua vermelha, o pequeno homem de fato escuro.
Da última vez que falámos, disse-me que já não sabia “quem devorava quem.”
Ignatius
Sim. Há aqui um frente-a-frente, mas também uma espécie de espiral: a figura esconde-se atrás de uma goela e encara outra, idêntica.
É como se estivesse diante do seu próprio reflexo monstruoso.
Lucian
Muito bem. É isso que eu gostaria de explorar hoje: esse confronto — mas através de duas leituras possíveis, duas formas de compreender o que ali está.
Ignatius (inclinando-se ligeiramente)
Estou a ouvir.
Lucian
Para Freud, este desenho seria a representação de um conflito psíquico.
Veria aqui o eu — essa pequena figura elegante, frágil, razoável — em luta com as forças arcaicas do id.
O trono, que ganha vida, que se transforma em boca, encarna a ameaça do transbordamento: o poder aparente do eu repousa sobre uma besta adormecida.
Ignatius
Então o assento do poder… seria também o assento do perigo?
Lucian
Exactamente. Aquilo que julgamos dominar funda-nos tanto quanto nos ameaça.
É a própria imagem da repressão: o que tivemos de conter para nos tornarmos civilizados, mas que ainda ruge sob a estrutura.
Ignatius (a reflectir)
Freud veria, portanto, nessa língua vermelha, uma pulsão — um resto de vida bruta?
Lucian
Sim. Um movimento de desejo ou de vitalidade que procura exprimir-se — mas que, não podendo fazê-lo directamente, se transforma em chama.
É a mesma energia, apenas deslocada. O erótico torna-se espiritual; a boca torna-se fogo.
Ignatius
E o medo da personagem?
Lucian
É o medo de perder o controlo, o receio da regressão.
Freud diria: a cena representa o risco de ser engolido pelas próprias pulsões, por aquilo que o supereu considera inaceitável.
Ignatius
Um combate entre a razão e a matéria… ou antes, entre o supereu e o id.
Lucian
Sim — e o eu, no meio, tenta manter o equilíbrio.
Para Freud, este desenho é uma imagem da repressão: representa aquilo que a personagem teme, para o manter à distância.
Ignatius
E quanto a Jung? Imagino que ele seria menos desconfiado em relação ao monstro.
Lucian (sorrindo)
Muito menos. Jung veria aqui uma cena de passagem, um momento iniciático.
O que Freud chama “monstro”, ele chamaria “símbolo do Si-Mesmo”.
Ignatius
O Si-Mesmo no sentido de totalidade?
Lucian
Exactamente. O Si-Mesmo é o conjunto do que somos — consciente e inconsciente, luz e sombra.
Jung diria: esta goela aberta não é uma armadilha, é um portal.
Convida-nos a descer às nossas próprias profundezas para nos unificarmos.
Ignatius
Então, onde Freud vê o risco de regressão, Jung vê um processo de expansão.
Lucian
Muito bem dito. Freud procura manter o eu em equilíbrio; Jung convida-o a deixar-se atravessar pelo inconsciente para se tornar mais vasto.
A goela, para ele, já não é o órgão que engole, mas o limiar da transformação.
Ignatius
E a língua de fogo?
Lucian
Continua a ser uma energia — mas de outra ordem.
Deixa de ser uma pulsão a reprimir ou a sublimar: é o fogo do Si-Mesmo, o espírito vivo que procura comunicar com a consciência.
A mesma chama interior — vista não como perigo, mas como inspiração.
Ignatius (pensativo)
Curioso… A mesma imagem pode ser lida como uma ameaça ou como um apelo.
Lucian
É o cerne de toda a psicologia das profundezas: o que nos assusta na sombra é, muitas vezes, o que quer nascer na luz.
Ignatius
Mas então, Lucian… em ambos os casos, o eu — aquele pequeno homem — está em posição de fraqueza.
Em Freud, defende-se; em Jung, hesita.
Há algum momento em que ele age?
Lucian
Em Freud, agir é manter a barreira.
Em Jung, é consentir em atravessá-la.
Ou seja: para Freud, a salvação vem do controlo; para Jung, da entrega — ou, digamos, da confiança.
Ignatius
E o senhor, entre estas duas visões?
Lucian (após um silêncio)
Diria que observam duas vertentes da mesma montanha.
Freud descreve a ascensão — o esforço de se separar da besta.
Jung fala da descida — o momento em que se compreende que a besta também faz parte de nós.
Um protege a fronteira; o outro atravessa-a.
Ignatius (acenando com a cabeça)
Talvez seja uma questão de maturidade interior.
Freud para a construção do eu; Jung para a sua superação.
Lucian
Disse tudo. Começamos por aprender a manter-nos de pé diante do monstro e, um dia, descobrimos que ele nos estendia a mão.
Ignatius
Então, se bem entendo… Freud diria: “Tem cuidado com esse fogo, pode consumir-te.”
E Jung: “Aproxima-te, pode iluminar-te.”
Lucian (sorrindo)
Sim. Um fala do perigo do desejo, o outro da sua virtude transformadora.
Mas ambos reconhecem que esse fogo é o próprio coração da vida psíquica.
Ignatius (após um longo silêncio)
E eu, que pensava ter desenhado um pesadelo… talvez fosse um auto-retrato em pleno incêndio.
Lucian
Talvez. Mas lembra-te, Ignatius: no incêndio interior, não se trata de fugir — trata-se de aprender a não se consumir, e às vezes… de se tornar luz.
Lucian cala-se.
Ignatius continua a olhar o desenho. O seu rosto suavizou-se.


