Eu gostaria, caro Lucian, antes de voltarmos à imagem que nos ocupa, de recordar-lhe que tudo o que podemos deduzir dessa imagem—cuja origem é desconhecida, já que também não está assinada—não passa de hipóteses.
O seu paciente, Lucian, Igniatius, como me disse, cria através dos desenhos que lhe traz personagens que estão mais próximos de uma função psíquica do que de uma entidade realista. É também com a mesma distância que ele se toma por Dom Cenoura. Quanto ao objetivo que persegue, só podemos conjecturar com os meios de que dispomos e, sobretudo, não devemos esquecer que isso não deve desviar-nos do nosso próprio objetivo, que é ajudá-lo.
Igniatius apoia-se no seu delírio quixotesco…
— Se ele se apoia no seu delírio… é para fazer o quê?
— Esse delírio, voltaremos a ele mais tarde. Não é muito frequente nesta forma específica, mas está incrivelmente presente, sob muitas formas diferentes, em todas as camadas da nossa “honorável” sociedade, para a qual, certamente… ainda que indiretamente, deveríamos estar a trabalhar…
— Não compreendo bem onde quer chegar!
— Deixemos isso por agora…
O supervisor volta à imagem e, com um gesto amplo, aponta para os grandes discos vermelhos, levemente alaranjados.
— Estas espécies de grandes sóis vermelhos, múltiplos…
Diz-se, consequência de uma certa dissolução da razão, que, segundo o ditado conhecido, “cada um vê o meio-dia à sua porta”.
Eu vejo aí uma fragmentação da temporalidade interna. Não existe um único tempo, você sabe isso tão bem quanto eu: o tempo do isso, o tempo do eu, o tempo do supereu, o tempo do trauma, etc.
Para o seu paciente, como para cada um de nós, isso pode significar que não há uma história clara, linear, mas zonas que vivem em horas diferentes.
E, novamente, isto não é sinal de loucura, mas de complexidade.
E a imagem carrega essa marca: vários sóis, vários meios-dias, vários centros de gravidade.
— Diga-me, Félix, é a minha vista que está perturbada ou… esta imagem mudou?
— Você sabe tão bem quanto eu, caro Lucian, que nada é realmente estável no universo… que é o nosso… nem você, nem o seu paciente, nem eu podemos pretender possuir toda a estabilidade que nos falta.
O supervisor recua um pouco, afunda-se mais na poltrona, levanta a cabeça para o teto e fecha os olhos.
— Não é apenas a imagem que mostra mudanças, mas o nosso olhar que muda à medida que descobrimos o que nela acontece… o que ela tenta mostrar-nos… e, através dela, aquele que a concebeu.
A propósito, devo voltar ao tema do duplo.
O que me impressiona nesta imagem, acima de tudo, é que quase tudo é duplicado.
— Explique-me, Félix, eu gostaria de compreender este duplo, e pelo facto de tudo ser duplicado, a nossa compreensão também poderia ser dupla…
— Aí está, Lucian, por assim dizer… Vamos tentar ser simples, se conseguirmos. Há dois papagaios…
— O que representam?
— Por enquanto, não sei. Tenho uma ideia… mas comecemos pelos dois ajudantes de K.
— Isso, eu sei que você sabe!
— De fato, tenho alguma ideia. E essa é, por enquanto, a mais satisfatória… para mim. Quer que eu a partilhe?
Félix, ligeiramente lisonjeado, não espera pela resposta de Lucian.
— Em O Castelo, Franz Kafka apresenta duas personagens singulares, chamadas simplesmente de ajudantes (Die Gehilfen), Arthur e Jeremias. Desde o início constituem um dos elementos mais desconcertantes do romance, condensando humor, absurdo, opacidade burocrática e o ambiente sufocante característico de Kafka. Embora apresentados como enviados para ajudar o agrimensor K., parecem não ter utilidade real nem origem clara.
— E segundo o senhor, o que são ou o que poderiam ser?
— O seu papel oscila constantemente entre servos, espiões, parasitas, duplos grotescos ou figuras simbólicas. Mas Kafka não fornece quase nenhuma informação estável sobre a sua identidade. Sabemos apenas que “parecem gémeos” e que adotam uma atitude de obediência excessiva a K., frequentemente ridícula. A sua personalidade parece maleável, quase vazia. Costumam rir sem motivo, repetir as palavras de K., agitar-se, empurrar-se… sem razão. Fundem-se, mostram-se infantis e até sorrateiros. Nunca existem independentemente da relação que mantêm com K. São como pequenos seres fabricados para girar em torno dele.
A falta de individualidade e a fusão constante—dormem juntos, falam um pelo outro—dá-lhes um caráter quase inumano ou mecânico.
— Daí a presença de Pinóquio na mesma imagem… Félix… juntos, eles são o duplo de Pinóquio…
— Excelente dedução, meu caro colega. Kafka descreve-os como figuras-limite, nem totalmente humanas nem totalmente espectrais. Um exemplo perfeito dessas criaturas kafkianas indeterminadas que borram as fronteiras entre o real e o irracional.
— Exatamente como Igniatius e Don Carotte…
Félix finge não notar. Ou melhor, disfarça o prazer de ter sido compreendido. Ele espera que Lucian continue… mas como ele se cala, Félix retoma:
— Oficialmente, os dois ajudantes foram enviados pelo Castelo para ajudar K. na sua missão. Contudo, o seu comportamento contradiz constantemente essa função. Quem lê o livro percebe que eles não o ajudam de fato. Quase nunca realizam uma tarefa útil, e K. deve frequentemente supervisioná-los, corrigi-los, afastá-los ou reparar os seus erros. Tornam-se rapidamente mais incómodos do que úteis. A sua presença gera confusão e agitação, perturbando inclusive as relações sociais de K., especialmente com Frieda.
— Mas então, Félix, qual seria a função deles?
— A sua atividade principal parece ser observar K. São silenciosos ou trocistas, sempre próximos, como testemunhas ou espiões enviados para informar as autoridades sobre um funcionário suspeito. Essa ambiguidade faz deles possíveis intermediários entre K. e a administração do Castelo, embora a sua ineficácia torne essa ideia simultaneamente cômica e inquietante.
— Isso não corresponde a uma missão. Tenho dificuldade em compreender… e temo que a minha imaginação me confunda… me leve a supor que nós poderíamos ser… enfim… esses ajudantes…
Félix não responde a essa insinuação—pelo menos, não de forma visível. Prossegue.
— Apesar da aparência caótica, eles são oficialmente mandatados. Através das suas trapalhadas, Kafka mostra uma administração capaz de decisões absurdas, de enviar ajudantes inúteis, duplicados, ou sem competências mínimas.
— Acredita que isso possa ter alguma ligação… ou que possamos estabelecer um paralelo com Igniatius e Don Carotte?
— Estás a ir demasiado depressa… Estamos apenas no início, mas já surgem algumas pistas de interpretação. Esses ajudantes talvez representem uma burocracia vazia e omnipresente, agindo sem lógica discernível—e no entanto astuta, inteligente à sua maneira.
Embora supostamente enviados pela administração, a sua origem burocrática é curiosa, talvez duvidosa… ainda que administrativamente atestada.
A dúvida é reforçada pelo facto de parecerem ignorar o Castelo, não possuírem competências profissionais, nem exibirem ligação real ao poder. Parecem vir do mundo da aldeia…
— Como assim? Em que se baseia?
— Dormem na estalagem, comem com os outros, conhecem os habitantes. Parecem criaturas da aldeia disfarçadas de representantes da autoridade.
E agora, a cereja no topo do bolo: muitas vezes, os críticos veem neles uma projeção—quase duplos grotescos—de K. Imitam os seus gestos, tentam segui-lo por toda parte, e sobretudo, parecem depender da existência dele para agir.
Aqui temos uma pista interessante para mais tarde… Lucian.
— Por que mais tarde, Félix?
— Porque, como eles, você é impaciente e agitado. Tem o profundo desejo de aceder ao Castelo… isto é, à cabeça do seu paciente… mas sem conseguir exercer um verdadeiro controlo…

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