À noite, na solidão do meu gabinete, abro o meu caderno e tento recapitular. Digo a mim mesmo que é uma sessão como outra qualquer. Uma supervisão banal. Nada que justifique tal insistência em escrever.
Ainda assim escrevo, quase apesar de mim:
Não sou o paciente do Lucian.
Paro de imediato.
Porque esta frase? A que responde tal afirmação?
Ninguém jamais me atribuiu esse lugar.
E, no entanto, escrevi-a, como quem traça uma linha para impedir um transbordamento.
Poderia riscá-la. Não o faço.
Digo a mim mesmo que é apenas um esclarecimento.
Uma forma de recordar o enquadramento.
Lucian é meu colega.
Fala-me do seu paciente, Igniatius.
Eu escuto. Eu supervisiono. Só isso. Continuo.
Igniatius conta uma história que tem dificuldade em reconhecer como sua.
Fala de Sang Chaud, personagem recorrente, sempre o mesmo e sempre outro, companheiro de um tal Don Carotte, figura grotesca e obstinada que luta contra o poder das palavras.
Também se toma por Sang Chaud e por outros ainda.
Já aí, ambos são fantasmas…
E não quaisquer fantasmas: nada menos que D. Quixote e Sancho Pança.
Pelo que sei, o relato repete-se, dobra-se sobre si mesmo.
Não há acontecimento.
Nada acontece, salvo a própria repetição.
Escrevo:
Atribuição à continuidade.
Poderia ter parado aqui. Talvez devesse…
Este material é-me familiar. Demasiado familiar.
À minha frente tenho uma ficção que fala no lugar do sujeito,
mantendo distância daquilo que poderia dizer-se de outro modo.
Mas Igniatius não se limita a contar.
Um dia, descobre — numa galeria ao rés-do-chão do prédio de Lucian — uma série de desenhos surpreendentes nos quais descobre, literalmente em imagem, o que não consegue exprimir em palavras.
A confusão aumenta quando percebe que esses desenhos, que de certo modo contam a sua história, se parecem muito com os esboços que Lucian faz no seu caderno enquanto ele fala…
Todas essas imagens, incluindo as de Lucian, instalam-se na sua mente.
Parecem-lhe estranhamente próximas da sua história.
Não ilustrações, mas equivalentes simbólicos deslocados.
Figuras que dizem outra coisa para além do que ele diz, mas que o tocam profundamente… intimamente até.
Os desenhos não representam exatamente o que Igniatius conta — pelo menos pelo que sei.
São como rébus, legíveis de várias maneiras.
Ainda assim, Igniatius sente que eles lhe falam, mas não os entende realmente.
E sobretudo, afirma não os conhecer.
Tem dificuldade em decifrá-los diante de Lucian — que poderia falar deles horas a fio…
Isto desperta mais do que suspeitas na mente de Igniatius.
Dou por mim a detalhar este episódio.
Digo que é necessário.
Mas sei que poderia resumi-lo.
Não o faço.
Igniatius está perturbado.
Ainda mais quando reconhece, nos desenhos, a figura de Don Carotte —
e quando constata que esse personagem se parece em tudo com Lucian.
Como se as imagens contassem mais, e melhor, que as suas próprias palavras.
É então que tudo se desloca.
Não posso ignorar que Igniatius manifesta claramente uma personalidade dupla — talvez mais…
Mas a de Lucian também me inquieta.
Haveria, portanto, uma semelhança entre dois gestos:
o de contar-se através de personagens fictícios
e o de desenhar essa história sem a ilustrar.
Igniatius está convencido de que Lucian é o autor das imagens.
Acredita sem rodeios.
Para ele, os desenhos não são coincidência.
Por vezes antecedem as suas palavras.
Parecem saber o que ainda não disse.
Essa anterioridade confere-lhes uma autoridade inquietante.
Lucian, por sua vez, não duvida.
Para ele, Igniatius desenha.
Fá-lo em segredo, talvez sem o saber.
Conta-se pela imagem tal como se conta pela ficção, sem reconhecer o seu próprio gesto.
Um autor que se ignora.
Dou-me conta de que escrevi: não duvida.
Irrita-me.
Essa certeza.
O que me perturba não é a tese de um ou de outro,
mas a sua simetria.
Cada um atribui ao outro a origem das imagens.
Cada um recusa assumir a paternidade.
E cada um, assim, reconhece às imagens uma autoridade superior à da palavra.
Anoto isto, depois paro.
Autoridade das imagens.
Não gosto da expressão.
Demasiado pesada, demasiado teórica.
Ainda assim deixo-a ficar.
Igniatius afirma não conhecer os desenhos, mas admite que lhe falam.
Dificulta-se a decifrá-los, sobretudo na presença de Lucian, que poderia falar deles durante horas.
Essa assimetria alimenta a suspeita:
Como poderia Lucian falar tão bem de imagens que não teria feito?
Lucian contou-me um momento específico.
Ausentou-se alguns minutos.
O seu caderno ficou aberto sobre a secretária.
Igniatius viu esboços semelhantes aos da galeria.
Escrevo: Ausência.
Poderia analisar a palavra. Evito.
Lucian explica que se exercita a reproduzir os desenhos trazidos pelo paciente, para compreender porque surgem.
É uma explicação plausível.
Repito-o a mim mesmo.
Mas algumas anotações parecem-se estranhamente com a escrita de Lucian.
Ele próprio o disse.
Como um detalhe. Quase com despreocupação.
Sinto resistência aqui.
Prefiro não insistir.
Deslizo rapidamente para uma hipótese tranquilizadora:
Igniatius poderia produzir estas imagens num estado segundo e esquecê-las depois.
Acontece. Nada extraordinário.
Escrevo-o.
Mas a escrita não me alivia.
Porque eu vi as imagens.
Reconheci Igniatius.
Mas também reconheci Lucian.
E reconheci outra coisa ainda:
a sua perfeita semelhança.
Lucian devia tê-la visto.
Nada disse.
E como explicar que, por coincidência, exista uma galeria sob a sua casa…
e que justamente ali Igniatius tenha encontrado desenhos nos quais ambos figuram?
Esse silêncio inquieta-me mais do que tudo o resto.
Volto, mais uma vez, à frase inicial:
Não sou o paciente do Lucian.
Agora compreendo porque a escrevi.
Porque, desde que escuto esta história,
já não sei bem que lugar me é pedido.
E porque sinto, apesar de mim, que a autoridade das imagens não se detém à porta do meu gabinete.
Digo a mim mesmo que exagero e que resistirei melhor da próxima vez.
Através dos meandros próprios de cada um, mal distingo o que “se passa nele”.
Por agora, supervisiono.
Deveria dizer: é tudo…
mas já não estou tão certo disso.
Fecho o caderno.

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