mercredi 15 octobre 2025

Dois homens na tenda






À primeira vista, a imagem parecia ser apenas um jogo de formas:
um teatro de lona vermelha, cordas, duas figuras presas no turbilhão de longas raízes verdes — ou tentáculos, conforme o humor.
Uma cena de aventura ingênua, quase infantil, que eu poderia ter atravessado sem lhe dar mais atenção do que a devida a uma ilustração de conto de fadas.
As cores vivas, o traço firme, o contraste entre o vermelho do fundo e o verde das formas orgânicas — tudo parecia falar apenas de um prazer visual simples, um pouco bruto, quase decorativo.
E, no entanto, havia esse detalhe: os dois homens usavam as mesmas roupas amplas.
Um casaco azul-noite, virado nas mangas, deixando ver o forro cor-de-rosa.
Um tinha a barba castanha, o outro, branca.
E — algo que eu não havia percebido de início — eles se olhavam.
Essa reciprocidade do olhar mudou tudo.
A imagem se abriu como um livro.
Eu já não estava diante de uma cena de naufrágio ou de circo marinho, mas diante de um enigma do tempo.
Primeiro, quis compreender o espaço.
Aqueles mastros, aquelas cordas, aqueles panos vermelhos — uma tenda, talvez de circo.
As raízes, pois era preciso escolher entre mar e terra, pareciam invadir esse recinto fechado, enrolando-se nos postes como para desagregá-los.
Tudo indicava uma luta: o humano contra o vegetal, a forma contra o fluxo.
Pensei então que a cena falava do caos, da perda de controle, de um mundo em que a natureza retoma seus direitos.
O homem, frágil, é apanhado por forças que o ultrapassam.
Leitura clássica, razoável.
Mas deixava-me faminto, como uma explicação curta demais para um sonho longo demais.
Faltava algo: um vínculo entre aqueles dois homens.
Por que dois? Por que semelhantes, por que separados?
Anotei apenas, sem ainda compreender, que o verde das raízes não era ameaçador: tinha o tom suave das plantas aquáticas, não o de um monstro.
Foi então que tudo se transformou.
Ao observar a posição dos rostos, não compreendia…
Imaginando-me em seu lugar, percebi que, da mesma forma que eu — embora parecessem olhar para outro lado — eles se viam.
Um, projetado no ar, voltado para o infinito do tempo, parecia reconhecer lá embaixo o que um dia se tornaria.
O outro, caminhando entre os braços das raízes, erguia os olhos para ele, como se contemplasse uma lembrança viva.
Essa troca de olhares… ou essas trocas, pois eu já havia introduzido os meus, bastante complexas, fissuraram minha interpretação.
A imagem não mostrava uma luta, mas um encontro.
Não dois indivíduos, mas o mesmo homem em duas idades, envolto na matéria viva de seu próprio tempo.
Naquele instante, meu olhar de crítico voltou-se contra si mesmo:
senti que não eram apenas aqueles dois homens que se olhavam.
Eu também estava preso nesse laço.
O homem jovem — talvez fosse meu olhar de outrora, aquele que quer compreender, explicar, erguer um sentido.
O homem velho — aquele que talvez eu me tornasse, aceitando que o sentido nunca se fecha.
As raízes já não eram armadilhas.
Estendiam-se, fluidas, guiando o olhar para o fundo e para fora, para o que está fora do quadro… fora dos muros.
Essas raízes pareciam conduzir a algum lugar, não para baixo, mas para um centro fugidio.
Lembrei-me de que as raízes de uma árvore sempre se afastam do tronco, nunca voltam ao ponto de origem: paradoxalmente, é ao se dispersarem que alimentam o lugar de onde vieram.
Havia aí uma verdade sutil: buscar as próprias raízes é aceitar que elas nunca conduzem à origem, mas à dispersão, à divergência.
O homem jovem, suspenso no ar, ainda procura um centro.
O homem velho, flutuando sobre as raízes, parece tê-lo compreendido: a origem não é um ponto, mas uma rede, uma geografia móvel.
Senti essa ideia se espalhar em mim como aquelas linhas verdes do desenho.
Eu já não analisava a imagem — era ela que me explorava, que me envolvia lentamente.
Talvez seja isso o que quer dizer “interpretar”: ser atravessado pelo que se contempla, como essas raízes atravessam a tenda.
Restava compreender o lugar.
Esse circo, ou navio, feito de cordas e panos vermelhos.
Tomara-o por um simples cenário, um acidente visual.
Mas era, na verdade, a chave da imagem.
O circo não é fixo, nem no espaço, nem no tempo.
Ergue-se, desmonta-se, transporta-se para outro lugar.
A cada apresentação, renasce — idêntico e outro.
É a própria imagem da existência: ex-sistere, estar fora de si, estar sempre deslocado.
Os dois homens vivem dentro dessa tenda como dois atores conscientes de sua cena.
Sua vida é uma sucessão de montagens e desmontagens: estruturas mentais, certezas, rostos que erguemos para não nos dissolver.
Esse lugar móvel é a metáfora do eu: incessantemente reconstruído, incessantemente precário.
O circo muda de cidade como a consciência muda de estado.
A cada desmontagem, acreditamos perder tudo — e, no entanto, tudo se repete, em outro lugar, quase idêntico.
Creio que compreendi, então, que o crítico que eu era, aquele que julgava “saber”, não passava de um pavilhão passageiro, uma versão provisória de mim mesmo, erguida pelo tempo de um olhar.
Não pude deixar de pensar em Borges — não apenas no Borges erudito e irônico das bibliotecas infinitas, mas naquele, mais raro, que escreve sobre o encontro consigo mesmo: o instante em que o velho cruza o seu duplo jovem numa rua de Buenos Aires e compreende que toda a sua vida cabe nesse intercâmbio mudo.
O quadro que eu contemplava parecia prolongar esse momento:
os dois homens sentem suas presenças, veem-se, reconhecem-se, mas não podem tocar-se.
A distância entre eles não é espacial, é temporal.
Entre ambos circula a matéria verde do tempo, fluida e viva — não linear, mas rizomática.
Eles só podem reencontrar-se no olhar de quem os observa: o terceiro invisível, o espectador, ou o leitor.
Assim, ao contemplá-los, eu os unia, apesar deles.
Seus olhos se encontravam através dos meus.
E, de certo modo, eu me tornava o verdadeiro pavilhão de sua cena — a tenda mental onde o seu encontro podia acontecer.
Percebo, ao escrever estas linhas, o quanto minha leitura se transformou.
Entrei na imagem como se entra numa história que se acredita simples — um naufrágio, uma luta, um caos.
E dela saí em outro estado: o de um homem consciente de que o caos é o seu próprio movimento vital.
As raízes já não são ameaçadoras.
São o que nos liga — ao outro, ao passado, ao futuro, ao solo que nunca habitamos por completo.
O circo já não é um cenário: é o mundo, erguido e desmontado a cada instante de consciência.
E aqueles dois homens já não são figuras de aventura: são os dois polos de um mesmo olhar, o antes e o depois de uma mesma iluminação.
Se eu tivesse visto essa imagem anos antes, teria reconhecido nela uma cena de catástrofe.
Hoje, vejo nela um sistema respiratório, um organismo simbólico, um sopro onde tudo circula: a memória, o tempo, o medo, a ternura.
Agora compreendo que a imagem não era falsamente ingênua — era apenas direta demais para ser vista de imediato.
Ela não mostra outra coisa senão o que acontece quando um homem descobre o seu duplo, quando se observa tornando-se aquilo que já é.
As raízes, as ondas, as cordas, as lonas vermelhas — tudo isso é apenas a textura do tempo.
E os dois homens, presos nessa rede, já não tentam escapar.
Sabem que o único caminho que leva à origem é aquele que dela se afasta.
Que existir é sempre erguer e desmontar o mesmo circo, através das idades, dos lugares, dos rostos.
Seu olhar recíproco não é o de um reconhecimento sentimental, mas de uma compreensão silenciosa:
“Tu és eu, em outra tenda, sob outro céu.”
E eu, o observador, fecho lentamente o livro, consciente de que acabo de ser atravessado, também, pelo que eles dizem sem uma só palavra.
Deixo a imagem como quem deixa um espelho — levando comigo a sensação de que algo, atrás de mim, continua a olhar.

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