lundi 10 novembre 2025

Dúvida

 “Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que elas são difíceis.”

Séneca




Lucian relata a cena no seu diário:

Ignatius ficou muito tempo diante daquela imagem. Parecia profundamente comovido. Permaneci em silêncio, de cabeça baixa, pois temia olhá-lo, receando que fosse tomado por uma daquelas emoções das quais não se regressa. A imagem — ou talvez uma lembrança precisa de que nunca me falara — impressionava-o de tal maneira que me pareceu prisioneiro dela. Vi nitidamente a imagem mover-se ao mesmo tempo que ele recuava… e então, como é de esperar, comecei a duvidar.
Mais tarde acrescentei que ele permanecera em silêncio e pensativo durante todo o dia. Nenhuma palavra lhe saiu da boca. Este detalhe é crucial. Ignatius era sensível… talvez demasiado… e as suas ausências eram muitas vezes provocadas por emoções extremas, por vezes experiências estéticas ou religiosas intensas, embora ele não as chamasse assim.
A imagem que nos trouxera nesse dia mostrava um homem reduzido à carne, totalmente entregue à morte. Não havia sinal de ressurreição, nem auréola, nem esperança. Mas, ao olhar mais de perto, a figura desenhada — Don Cenoura, suponho — depois de ter enfrentado, parecia querer fugir. A dúvida persistia em mim, e o silêncio de Ignatius não ajudava.
A imagem intrigava-me; era uma obra protestante e realista, herdeira da banda desenhada, onde a graça já não passa pela beleza, mas pela verdade crua… ainda que simbólica. Para Ignatius, crente tímido, ver o monstro “inteiramente humano”, sem traço de divindade, deve ter sido uma experiência espiritual vertiginosa. O monstro falava uma língua que ele não compreendia, e no entanto transpassava-o por completo.

Dizia ter compreendido — ou pressentido — que aquela boca aberta sobre a morte podia abalar a fé até do crente mais sincero… o que ele não era.

Como escreveu Ignatius nos seus cadernos:

“Esta imagem poderia fazer alguém perder a razão.”

Para ele, se bem o entendi, a imagem tornou-se símbolo de uma fé confrontada com a morte, do mistério do mal e da tentação da dúvida.

O realismo distante dessa imagem simbólica tornou-se um instrumento dramático:

“Como se fosse morrer,” disse-me ele, “como qualquer homem, sem retorno?
E que seria de nós sem o amor do mundo, se já não houvesse esperança?”

A fé só existe se atravessar o abismo do absurdo — aquele onde tudo parece perdido.

“Só depois de encarar este monstro, este homem diante da morte, Ignatius, é que Don Cenoura pode acreditar no milagre da ressurreição.”

“Não creio que tenha coragem para isso,” respondeu-me… mas ao mesmo tempo já iniciava uma mudança de rumo… e depois disse-me que ouvira uma voz que lhe parecia ser a de Sangue Quente, dizendo:

“Nenhum cavaleiro deve desprezar a sua montada, seja qual for, nem desdenhar o caminho, por mais estreito ou escuro que pareça. Pois muitas vezes é mais valoroso aquele que se curva para passar a porta estreita do que o que cavalga orgulhoso pelos grandes caminhos. A grandeza, senhor, não se vê nas armas brilhantes nem na sombra lançada sob o grande sol, mas no coração que suporta e consente à prova sem riso nem murmúrio.”

Lucian continua a redacção do seu caderno:

“Foi assim que Ignatius me disse ter recuperado a coragem e a lembrança do seu companheiro…
Quanto a mim, custava-me distinguir — confesso — quem, de mim próprio, de Don Cenoura ou de Ignatius, lutava com a velha questão: devo julgar a prova pela sua aparência ou pelo seu alcance invisível?”

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