vendredi 7 novembre 2025

Língua de Fogo (português)

 

A noite cai. Um reflexo púrpura espalha-se pelo parlatório.
No trono incandescente, ninguém pode sentar-se.
A chama, a cada passo, lambe a sombra e a cinza,
E o livro vermelho dorme — impossível de ouvir.

Lucian quer falar, mas a sua voz consome-se;
Das suas palavras ergue-se um fogo — língua, clarão, neblina.
Cada frase que se forma gera um turbilhão,
E os seus lábios de brasa escrevem sobre o chumbo.

Igniatius, trémulo, apanha uma palavra que voa:
É o seu fogo, Senhor, ou a minha própria palavra?
Este livro vermelho é meu, sinto-o nos meus dedos.
Arde, e o seu brilho nomeia-me mais do que a boa-fé.

Mas Lucian, na chama onde os seus seres se misturam,
Vê o outro tornar-se aquilo que ele próprio poderia ter sido.
Roubou-me o fogo, o verbo, a razão!
Grita ao vento avermelhado que torce o horizonte.

E o outro, num riso onde todo o universo se dobra:
Ninguém é ladrão do fogo; a chama desdobra-se!
Ela passa, morde, ilumina, foge,
E ninguém possui essa língua que nos destrói.

 

 

 
O diálogo que se instalara entre o doutor Lucian e o seu paciente Igniatius tornara-se — diga-se o mínimo — ardente...
Verdadeiras línguas de fogo que a boa educação de ambos só moderava tenuemente.

– Tal como Dom Quixote, Igniatius, age no mundo segundo a lógica dos seus próprios relatos. Em Dom Quixote e em si, a narração não é um sonho passivo: torna-se acção.

– Se o cavaleiro age conforme a história que escolheu — por vezes ao preço do ridículo, senhor Lucian — como no episódio dos moinhos de vento, onde vê gigantes onde o mundo real oferece apenas ventos vulgares e pás de madeira cobertas de panos gastos, não é esse o caso das imagens que me atribui... O real não prevalece sobre o relato: é o relato que molda a sua percepção do real.

– O seu imaginário heróico transforma raízes num monstro ondulante à superfície das ondas onde penetra, antes de fazer surgir ilhas das quais brotam vulcões e circos cujas luzes incertas se unem às mais intensas, saídas dos crateres. A ficção torna-se uma poética do mundo que revela a criatividade humana.
É certo que essa visão provoca desfasamentos cómicos, por vezes trágicos: a sociedade, que não entra no seu jogo, pune-o física e socialmente.
Contudo, Cervantes — e o senhor também — introduzem nuances: Dom Quixote e Dom Cenoura, cada um à sua maneira, inspiram pela sua fé no relato.
As vossas loucuras respectivas revelam a parte de ficção necessária à vida humana: quem poderia viver sem ideal, sem narrativa fundadora?
Sabe, quando reflito sobre o que funda a identidade humana, não consigo concebê-la como uma substância fixa ou um núcleo imutável.
A meu ver, o homem não é um ser que é de uma vez por todas; é um ser que se conta.
Por isso lhe falo da noção de identidade narrativa: a ideia de que só nos compreendemos a nós próprios contando-nos.

– A nossa identidade não se reduz à continuidade biológica do corpo, nem à memória bruta dos acontecimentos vividos.
– Reside na intriga, na tessitura pela qual damos coerência, sentido e orientação à nossa existência.
Diria, pois: o homem é um relato em processo de se dizer.

Nesta perspectiva, a personagem de Dom Quixote, criada por Miguel de Cervantes, e Dom Cenoura, criada por si, oferecem uma ilustração exemplar da condição humana enquanto Sapiens narrans.

Alonso Quijano, o leitor apaixonado de romances de cavalaria — e o senhor, Igniatius, amante de imagens — não se tornam heróis errantes por simples loucura, mas por apropriação narrativa.

Integra na sua vida um relato já feito — o dos livros e das imagens que leu e interpretou — e reinterpretou-os na primeira pessoa.
Ao adoptar o papel de Dom Cenoura, reconfigura a sua própria existência segundo um modelo heróico.
Diria que realiza sobre si mesmo o que chamo uma mise en intrigue da vida: liga os acontecimentos dispersos da sua existência numa história significativa.
Assim, a sua identidade já não pertence à ordem do dado, mas à do narrado.

 

 

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