dimanche 30 novembre 2025

Uma ordem invisível

 

Um motivo avança, claro como uma pergunta.
Outro segue-o, o seu espelho deformado.
Entre ambos, o mundo tece-se: linhas que se ignoram e, no entanto, concordam. Depois tudo se ergue,  espiral de ecos, e desaba de repente, deixando no ar o sinal breve de uma ordem invisível.


Surgida do tumulto oceânico como um pensamento esquecido pelo mundo, ela repousa, altiva e nua, sob o céu mutável. O vento reina ali como senhor, mordendo as pedras, açoitando os cumes, semeando queixas nos sulcos das falésias. Em redor, o infinito marinho: uma ondulação sem fim, sem margem, sem fundo, onde os dias se confundem com as noites e os séculos com os sonhos. Nesta charneca batida pelo vento, o silêncio está povoado. Um burro, vigia pacífico, observa ao longe. Ao seu lado, um cão atento ergue as orelhas para o horizonte, e entre ambos está uma criança.
Sentinelas estranhas, como uma memória distante.
Juntos, dominam um promontório; o seu circo improvisado estende-se a seus pés, feito de tábuas naufragadas, lonas rasgadas, objectos salvos que parecem arrancados ao ventre de um sonho despedaçado. O vento assobia pelas cordas como por harpas quebradas.
Toca em tudo: mastros torcidos, velas pendentes, ossadas de histórias.
Por vezes, entre rajadas, sobem vozes,  nem grito de ave, nem eco humano. Outra coisa. Sopros articulados. Palavras vindas de algures, trazidas pelas grandes asas do ar salgado.
Vozes que não parecem nascer aqui, mas de um mundo paralelo, talvez igualmente perdido.
Como se, para além das ondas, o autor, a personagem e o leitor se tivessem extraviado, murmurando as suas dúvidas ao largo.
Um teatro sem cortina, sem público, sem fim —
e no entanto, onde cada ser, ou cada coisa — se é que há diferença — procura o seu lugar na memória do vento.
Igniatius cala-se.
O sopro da memória alargara-lhe o olhar,
como se a sala do consultório se tivesse aberto sobre as ilhas móveis da sua infância.
Lucian, sentado na poltrona, não se mexe.
Respira discretamente.
— E era sempre… a mesma ilha? pergunta ele suavemente.
Uma pergunta neutra, simples, como dar corda a um velho relógio, mas carregada de uma estranha acuidade, como se Lucian já soubesse que a resposta seria não.
Igniatius abanou a cabeça.
— Não. Nunca a mesma. Mudavam. O arquipélago movia-se como um animal debaixo da pele. Um dia a ilha era redonda, quase suave; no dia seguinte abria-se em duas, como uma boca de pedra pronta a engolir-nos. Lembro-me de uma noite em que todo o chão vibrava, Lucian — tudo… até a areia tremia. E o circo tinha de recolher, desmontar-se, fugir, como uma tenda apanhada na respiração de um gigante.
Lucian sorriu, um sorriso quase imperceptível,
mas suficiente para fazer tremer Igniatius.
Pois nesse sorriso havia algo… insinuado.
— Sabia? pergunta Igniatius.
— Não, responde Lucian. Estou apenas a ouvir.
Mas a resposta, demasiado lisa, aumenta o desconforto de Igniatius.
Ele continua, quase contra a sua vontade:
— As ilhas mudavam de forma. Os homens também. Só o burro… ficava sempre igual. Sempre. Não tinha medo do fogo, nem dos abalos, nem das partidas apressadas. Deitava-se junto a mim, ou eu junto a ele… Ouvíamos tudo, mas de outra maneira, como se cada palha fosse uma flauta, e todas juntas formassem um órgão que abafava os ruídos do mundo e do céu.
Lucian acena lentamente e murmura:
— Como um refúgio vivo.
Igniatius estremece.
— Sim! Isso mesmo! Era exactamente isso que eu ia dizer… Você… como sabia que eu ia dizer isso?
Lucian permanece imóvel.
— Não sabia. Talvez adivinhasse. A sua história fala-me… profundamente.
A frase vibra no ar.
E algo na postura ambígua de Lucian provoca em Igniatius um arrepio gelado.
— “Adivinhar”… repete ele, frágil. É curioso. Porque às vezes sinto que adivinha mais do que isso, Lucian. Como se…
Procura as palavras.
— Como se já conhecesse estas ilhas.
— As suas, responde Lucian suavemente. São as suas ilhas, Igniatius.
Mas Igniatius abana a cabeça, agora quase violentamente.
— Talvez sejam também as suas.
Lucian não responde.
Então Igniatius retoma, com uma voz lenta, quase cantada:
— Quando falo, você nunca se surpreende. Termina as minhas frases. Antecipas as minhas memórias antes de eu as alcançar. Parece… preceder-me.
Olha Lucian como quem observa alguém de pé numa fronteira invisível.
— Lucian… tem a certeza de que nunca me ouviu contar isto? Noutro lugar? Antes? Ou… de outra maneira?
Um relâmpago discreto atravessa o rosto de Lucian.
Mas Igniatius vê-o.
— É isso, não é? murmura. Você não se surpreende porque… porque me conhece. Talvez me conheça… há muito tempo… e talvez — se é possível — antes da minha memória.
Lucian endireita-se ligeiramente.
— Igniatius… respire fundo e continuemos. Deixe as memórias vir. Estou aqui para as receber…
Mas a frase soa como uma resposta demasiado treinada.
Igniatius estreita os olhos, cruza os braços.
— Está aqui… sim. Desde quando?
O silêncio cai — denso, luminoso, vertiginoso.
Os mares da memória flutuam à volta deles,
mas outra pergunta — terrível e magnífica — nasce em Igniatius:
E se Lucian não estivesse apenas a ouvi-lo…
mas — de certo modo — a chamá-lo?
E se o circo, o burro, as ilhas, a criança…
tivessem começado a existir porque Lucian estava ali para os receber?
A sessão continua “como se nada fosse”, exteriormente.
Mas no fundo, algo abre-se, inverte-se, revela-se.
Um ponto onde tudo converge.
E mal parece que memória e realidade formam um todo…
esse todo começa a desfazer-se.


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