mercredi 12 novembre 2025

O fogo das palavras

 
“O discurso não é simplesmente o que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, e através do qual, se luta — o poder de que se procura apoderar.”
Michel Foucault, A Ordem do Discurso (1971)



– Porque luta contra o Leviatã, Igniatius?
– É tão evidente que me espanta ouvi-lo perguntar… Ora! Quem se deixaria engolir sem lutar?
– Parece-me tê-lo ouvido dizer — não o invento — que o Leviatã o convidava a penetrar nas suas profundezas, e não que se preparava para o devorar.
– E o senhor? No meu lugar, “engoliria essa conversa” sem reagir?
– Não estou no seu lugar, como insinua… e recordo-me de o ter ouvido dizer, aqui mesmo, neste gabinete, que “ele veria o que veria…” O que, a meu ver, nada significa.
– E o senhor, senhor Lucian! Com o que luta?
– Deveria sabê-lo, Igniatius… Aqui tudo passa pelas palavras.
Todo o caminho percorrido até agora — o ciclo prometeico, a descida ao inconsciente, o encontro com o monstro-Leviatã e a luta com o fogo da linguagem de Igniatius sob a figura de Dom Cenoura — prossegue como um diálogo entre ele e Lucian sobre o discurso enquanto campo de poder.
– Diz que luta contra o Leviatã, Igniatius. Mas se não fosse um combate… e se fosse uma conversa interrompida?
– Uma conversa? Está a brincar, Lucian. Ele ruge, estremece, enrola-se à minha volta. E as suas línguas — as suas línguas de fogo — dilaceram-me!
– Línguas de fogo, diz? Interessante. E se essas línguas não fossem chamas, mas… linguagens?
– Linguagens? Quer insinuar que o monstro fala?
– Fala desde sempre. Apenas não soube escutá-lo. Imaginou-se engolido por ele. Isso assusta-o. Mas talvez… já esteja dentro do discurso que ele profere.
– Quer dizer que estou na sua boca?
– Digamos… na boca… na língua… ou, melhor, na sua frase — para não dizer, na sua linguagem. O Leviatã é a linguagem, Igniatius. Luta contra as palavras como outros lutam contra os deuses. Julga-as inimigas, mas são a própria carne do seu pensamento.
– E o que faria o senhor, se as suas palavras começassem a engoli-lo?
– Procuraria compreendê-las antes de me afogar. Veja, é Prometeu em luta com o seu próprio fogo. Roubou a linguagem para nomear o mundo, e agora esse fogo consome-o.
– Prometeu? O que roubei eu? Meia dúzia de frases rabiscadas em cadernos! Algumas palavras lidas em livros… palavras de criança, fragmentos de sonhos, cóleras!
– É esse precisamente o fogo, Igniatius. O seu. O fogo das palavras. Pensou que o serviriam, mas começaram a pensar por si.
– Então o Leviatã não é a besta? Nem o mar?
– É tudo isso ao mesmo tempo. É o mar da linguagem. O seu ventre é o vasto reservatório dos discursos, onde tudo acaba por cair, dissolver-se e reformar-se. Não luta contra ele; luta dentro dele.
– Mas porquê lutar?
– Porque, como dizia Foucault, o discurso não é apenas o que traduz a luta… é aquilo por que e através do qual se luta. Luta pela palavra, Igniatius, porque é o único lugar onde pode existir.
– … Existir? Quer dizer ser?
– Ser, sim. Ser nomeado, dizer-se, repetir-se. Mas também arder. Cada palavra é uma chama, lembre-se. Você, Dom Cenoura, quis cavalgar o fogo da linguagem como Dom Quixote a sua quimera.
– E eis-me engolido pela besta.
– Não. Absorvido pela palavra. Não é morte; é metamorfose. Atravessou o fogo vermelho do trono e agora mergulha na água do Leviatã. O fogo e a água procuram-se. Tal como a palavra e o silêncio.
– Está a dizer-me que devo então calar-me?
– Não, de modo algum, Igniatius… mas falar de outra maneira. Não brandir mais a linguagem como uma arma — escutá-la, como se escuta o oceano. O que chama “luta” pode ser apenas aprender a respirar sob a superfície das palavras.
Igniatius, após um silêncio...
– Então o Leviatã fala…
– Sim, e há muito tempo lhe diz: “Tu és a minha língua, e eu sou o teu sopro.”
– … E se eu me calasse?
– Então o fogo extinguir-se-ia, e regressaria ao mar das coisas mudas. Mas você, Igniatius, nasceu do verbo. Prometeu não roubou o fogo para se calar.
– Creio compreender, senhor Lucian. O Leviatã não é o meu inimigo. É a minha linguagem. E eu luto para não desaparecer na sua boca.
– Exactamente. E se aprendesse a falar desde a sua garganta, em vez de contra as suas mandíbulas… talvez pudesse transformar o monstro em canto.
Lucian encarna aqui o psicopompo, aquele que revela ao paciente a natureza do seu próprio fogo — a linguagem como potência prometeica e lugar de dominação.
Por intermédio de Dom Cenoura, Igniatius descobre que a sua luta exterior contra a besta é, na verdade, uma luta interior contra o discurso — ou, mais precisamente, contra a forma como o discurso o envolve, o devora e o constitui.
O Leviatã torna-se símbolo da linguagem total, do mar discursivo que engole o sujeito mas também o faz existir.
A citação de Foucault ganha corpo: a linguagem não é apenas o campo onde as lutas se exprimem; é o próprio objecto da luta — o fogo prometeico que se deseja possuir.

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