lundi 20 octobre 2025

2. À fé do olhar (Versão em português)

 
“É um esquema extremamente dinâmico e dramático. Vê-se, de início, uma sobreposição de camadas que correspondem ao que Freud anota, na parte inferior esquerda, como sendo as ‘profundezas do recalque’. Nelas, certas ‘cenas’ ou representações — por vezes traumáticas — estão incrustadas, como pepitas presas na espessura dos sedimentos. E então, tudo isso começa literalmente a se elevar: a partir dessas imagens depositadas e enterradas, que Freud representa por pequenos traços horizontais, surgem três ‘sintomas’, cada um deles associando várias cenas recalcadas. A energia desses surgimentos é enfatizada pela abundância de linhas diagonais, contínuas ou pontilhadas, que vão e vêm, mas convergem todas para esses três pequenos pontos sintomáticos. Parecem desenhadas para sugerir ao leitor que seriam capazes de rasgar todas as superfícies de proteção. São como ‘setas do tempo’ que se teriam erguido de sua habitual e confortável horizontalidade. São inatuais, na medida em que são inesperadas, agressivas, disruptivas — e quase, se me é permitido dizer, tão alegres quanto perigosas. Como lanças erguidas no decorrer de alguma procissão revolucionária.”
 
Georges Didi-Huberman, Imaginar recomeçar, Les Éditions de Minuit, p. 62
(tradução aproximada) 
 


O monstro do Loch Ness e a fé do olhar

Eu estava então no ateliê de Lucian, meu amigo. Ele era um psiquiatra renomado e o que todos chamavam de “consultório”, ele fazia questão de chamar de “ateliê”. 
– É aqui que eu trabalho com meus pacientes, dizia com paixão.
 
Nesse dia, conversamos longamente, ou melhor, ele falou longamente, sobre o monstro do Loch Ness.
“Nessie”, dizia ele, qualquer pessoa sensata sabe, ou pelo menos desconfia, que ele não existe. Mas o desejo de que exista, esse é real. Só se vê o que se quer ver. Fabricamos o visível a partir da falta.
E acrescentou:
Talvez aconteça o mesmo com as obras de arte. Elas só existem porque alguém as espera. O museu, a galeria... ou até este ateliê... podem ser como um lago de onde se espera que uma forma surja.
 
Essa ideia me perturbou. Apesar de mim mesmo, pensei em silêncio: 
– O monstro do Loch Ness não é uma criatura: é um mecanismo do olhar.
 
Tens razão, disse meu amigo, como se lesse meus pensamentos.
E continuou: 
– Uma imagem intermitente, feita de aparições e desaparecimentos.
E se toda obra de arte não fosse senão isso: um acontecimento de aparição, uma crença provisória no visível?
– Somos vigilantes...
Essas poucas palavras escaparam literalmente da minha boca.
– Cada olhar sobre uma obra é um momento de fé. E é essa fé que engendra a visibilidade... Um pouco como aquele pequeno personagem, sozinho sobre sua rocha, que vê diante de si aparecer aquilo em que acredita...
 Essa observação, embora simples e sem agressividade, me fez estremecer. Lucian, é claro, percebeu.
– Conheces o diagrama de temporalidade que Freud esboçou?
– Evidentemente, eu não conhecia..
Meu amigo tirou um de seus cadernos e começou, desajeitadamente, com uma mão mais acostumada a escrever do que a desenhar, a traçar um pequeno esquema.
 
 
Sigmund Freud, Diagrama de temporalidade:
“sintoma” e “trabalho” psíquico, 1897
(“Manuscrito M”) Desenho a tinta. Washington,
Library of Congress – Sigmund Freud Archives.
Publicado em Cartas a Wilhelm Fliess, Paris, PUF, 2006, p. 312 
 
 
– Freud desenhou algo semelhante: um ‘diagrama de temporalidade’.
Ondas, curvas, retornos”, dizia ele enquanto desenhava.
– O tempo do inconsciente não é linear”, dizia, “é circulante, reversível, respirante. O passado não está atrás, mas embaixo, e de tempos em tempos sobe à tona. O presente não apaga: ele repete. Teu Leviatã... olha: faz o mesmo. Aparece, desaparece, reaparece. Cada corcova de seu dorso é um instante de memória que surge e logo se apaga, ao ritmo do movimento do monstro: aquele que mostra. Cada depressão é como um esquecimento que se afunda nas profundezas do inconsciente... para voltar mais tarde. Concluo que esse monstro é uma espécie de ‘máquina do tempo’.”
– Aparece, desaparece, reaparece. Cada corcova é uma lembrança. Cada depressão, um esquecimento. Concluo que esse monstro é uma espécie de ‘máquina do tempo’”, repeti — talvez um pouco tolo... ou pelo menos mecanicamente.
Compreendi então que a imagem podia conter várias temporalidades. O monstro e o lago formavam um diagrama do psiquismo: o fundo era o inconsciente; a superfície, a consciência; e o que emergia era a lembrança, a emoção, o medo, o desejo — vindo à tona.
 
Continua…


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