vendredi 31 octobre 2025

O desaparecido e o presente

 “Esquecer é uma das grandes formas de liberdade.”

Khalil Gibran


Interiormente desequilibrado, surpreendido pela pergunta de Lucian, Ignatius ficou em silêncio durante um longo momento. A palavra consulta ecoava em laço na sua cabeça. Ouve-se o roçar de um casaco, o crepitar longínquo de uma vaga. Fugindo da palavra, ergueu a mão onde segurava um pedaço de corda, como um cordão umbilical rompido. Um pouco trémulo, fez uma pergunta com voz sincera.
— Então, se é o homem que passa… o que acontece à memória? O que acontece às nossas lembranças? Ficam algures, ou também passam?
Lucian acenou.
Sorriu. Esse tipo de pergunta agradava-lhe, porque vinha da experiência, não de um conceito. Inclinou-se ligeiramente para a frente, desviando o olhar e lançando uma rápida vista de olhos por detrás de si, antes de fixar Ignatius como quem vai revelar algo secreto, mas também muito simples.
– Ah… a memória. Sim, faz bem em trazê-la ao jogo.
Porque a memória é precisamente aquilo que joga entre o que passou e o que continua vivo. É um entre-tempo. Guarda e transforma; não congela. Pensamos que a memória conserva. Não: recria. Cada vez que recordamos, reencenamos a cena, deslocando-a um pouco. Reintroduzimos jogo entre o acontecimento e nós. É por isso que duas pessoas que viveram a mesma situação nunca a recordam da mesma forma: cada uma fez a sua passagem. Se a memória fosse apenas armazenamento, estaria morta.
– Seria um museu de cera, preso num tempo que já não existe…
– Exactamente… Mas a memória viva é a que reinventa. Reencena o passado no presente, ajustando-o ao que nos tornámos. É uma memória em acto, não em pedra.
– Então… quando dizemos que é o homem que passa, isso não significa que desapareça.
– Não, ele deixa traços, dobras, intervalos.
E é aí, nesses intervalos, que a memória trabalha.
– Mantém a passagem aberta…
– Justamente… Veja, quando perdemos alguém, pensamos que o laço terminou. Mas na verdade, o laço passa de outra maneira.
– Por vezes sente-se num gesto, numa palavra, num sonho… ou numa imagem!
– Exactamente — algo que reencena o laço sem o repetir. Já não é a mesma presença, mas também não é ausência.
É o entre-dois da lembrança e do vivo.
É aí que a memória opera: na passagem simbólica entre o desaparecido e o presente.
E depois há a memória colectiva.
Uma sociedade também passa.
Passa de um quadro para outro, de um jogo para outro. E aquilo a que chama “memória” é a maneira como reencena as suas feridas e as suas glórias.
Às vezes, já não sabe jogar: repete, rumina, bloqueia.
– E nesse caso, que fazer?
– É preciso reabrir o jogo, devolver passagem, permitir que algo antigo circule de outra forma. É isso, fazer memória: fazer circular o antigo no presente sem o aprisionar. E, se quiser, podemos dizer que a memória é o que impede a passagem de ser esquecimento puro — mas também o que impede a memória de ser repetição pura.
É o entre-dois do mesmo e do esquecimento, da lembrança e da vida.
Portanto… o tempo não passa, o homem passa, e no seu passar deixa um fio — um pouco de memória, um pouco de jogo. Esse fio poderá ser retomado por outros, ser retecivelado, e assim a vida transmite-se. Não como coisa que se guarda, mas como movimento que se reencena.
Calou-se.
– Como um movimento que se reencena… Lucian, posso fazer-lhe duas perguntas?
– Faça favor…
– Diga-me… o que quis dizer ontem… quando falou de consulta? E… porque é que não me respondeu acerca dos desenhos?

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