E eis Igniatius, ainda hesitante no limiar da boca do monstro, a escrever este pequeno texto que entra em ressonância com as palavras do monstro — palavras gravadas em letras de fogo, subtilmente atravessadas e traduzidas por letras de fumo que se evaporam de imediato, misturando absurdo, mistério e uma sabedoria enigmática:
Mal as palavras se pronunciam, o debate começa:
– Qual seria, senhor Lucian, a filiação entre o desenho e o desígnio, a sua separação progressiva, e o que ela revela do nosso vínculo ao mundo, à criação e ao pensamento?
– Houve um tempo, caro Igniatius, em que desenho e desígnio eram um só. O traço e a intenção...
– Você e eu...
– ...a mão e o espírito, entendiam-se como as duas vozes de um mesmo canto. O artista traçava na folha o pensamento que o habitava; o filósofo, ao conceber o mundo, esboçava-lhe os contornos invisíveis. Nessa proximidade etimológica, nesta palavra dupla nascida do latim “designare” — marcar com um sinal, indicar, mostrar — ressoa uma verdade esquecida: pensar era já desenhar.
– Quer dizer: o gesto anterior à cisão?
Igniatius, em segredo, vê a água a mover o seu moinho…
– Algo assim… O desenho, na origem, não é apenas arte plástica: é gesto de revelação.
– Traçar uma linha é fazer o mundo aparecer!
– A mão descobre o que a consciência pressente confusamente. No traço, o visível advém a si mesmo. Mas esse gesto não é inocente: contém um desejo de ordem, uma projecção de sentido. O desenho é um desígnio que se ignora. O homem das cavernas, quando pintava um bisão na parede, não representava, invocava.
– Talvez uma dupla invocação… pura hipótese, se considerarmos que ouvia uma voz cuja música guiava a sua mão...
– Exactamente, Igniatius… Cada traço carregava uma vontade, uma finalidade mágica, existencial, cósmica.
– Diga-me, então, como se deu a lenta dissociação entre o espírito e a mão?
– O desenho era então oração, plano e acto ao mesmo tempo: imagem e projecto confundiam-se. Depois veio o tempo em que o desígnio se emancipou do desenho.
– Como assim?
– O espírito abstracto — o da metafísica, do cálculo, da planificação — sobrepôs-se. O desígnio tornou-se conceito, projecto, intenção — uma projecção mental voltada para o futuro. O desenho, esse, permaneceu no presente do gesto, na materialidade do traço, confinado ao domínio do sensível.
Essa separação, nascida da modernidade, marcou a cisão mais vasta do pensamento ocidental: a do corpo e do espírito. Onde o desígnio quer dominar, ordenar, prever, o desenho acolhe o imprevisto, a surpresa do mundo.
Um inscreve-se na lógica do plano; o outro, na graça do movimento.
Assim, o que outrora unia o criador, o seu pensamento e a sua mão, dividiu-se: o desígnio pertence agora ao engenheiro, ao estratega, ao demiurgo abstracto; o desenho, ao artista, ao sonhador, àquele que ainda não sabe o que faz, mas fá-lo com exactidão instintiva.
– Dessa cisão nasce uma nostalgia do sentido encarnado. O mundo contemporâneo está cheio de desígnios sem desenho: planos políticos, estratégias económicas, algoritmos de controlo. Tudo é concebido, previsto, calculado, mas nada é traçado à mão. A linha viva apaga-se diante da modelação digital.
O desenho, reduzido a imagem decorativa, já não inventa; ilustra. E, contudo, em cada traço autêntico, artístico ou existencial, renasce a possibilidade da sua reconciliação. Quando a mão reencontra o pensamento, quando a intenção se deixa guiar pela linha, algo de profundamente humano se rejoga: a harmonia do ver e do querer.
– Rumo a uma reconciliação?
– Reunir o desenho e o desígnio seria reaprender a pensar com os dedos.
– Ou seja, devolver à mente a sua materialidade, e à mão a sua inteligência.
– No desenho, o desígnio redescobre-se através da experiência do mundo sensível. E talvez seja esse o papel da arte hoje: reparar a fractura entre a visão e o gesto, entre o plano e a presença.
– O desenho torna-se então uma meditação...
– Sim... não a execução de um projecto, mas o nascimento lento de uma intenção, a revelação progressiva de um sentido que ainda não se possui.
– E que talvez nunca se venha a conhecer!
– O desígnio, longe de ser um plano fixo, volta a ser o que foi na origem: um impulso, um sopro, um sinal lançado para o futuro, não para dominar o mundo, mas para habitá-lo.
No seu caderno, Igniatius anota:
O desenho é o desígnio da mão; o desígnio, o desenho do espírito.
O seu encontro, raro e frágil, é o próprio lugar da criação.

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