samedi 22 novembre 2025

Falta

 “Que trata dos múltiplos aspectos da questão. Confronto inevitável. Tosses e conversas cessam, instala-se o silêncio enquanto o homem entra em cena, sem pressa, dirigindo-se — quase flutuando — para o grande piano preto lacado, cintilante, sobre o qual então, muito lentamente, se deita de todo o comprimento: pois não é senão pó.”

Éric Chevillard, As Ausências do Capitão Cook, Les Éditions de Minuit



Enquanto Lucian permanecia, durante alguns instantes, perdido nos seus pensamentos diante da imagem do dia — revendo as suas próprias imagens de um circo à deriva — Igniatius continuava a segurar o caderno entre os dedos, como se segura uma carta que tanto pode acusar como salvar…
Como saber?
Lucian, de novo na sua poltrona, olhava-o com aquela atenção ligeiramente contida, quase deferente, que se reserva aos objectos frágeis que nunca são apenas objectos.
“Leia-me outra vez essa passagem,” disse Igniatius com a voz partida. “Aquela em que diz que a terra e o mar — pai e mãe, disse você — se desentendem no céu.”
Lucian encontrou a página e leu.
À medida que as palavras caíam na sala como grandes gotas de chuva sobre o pó do caminho, Igniatius enrijecia, depois relaxava, depois enrijecia de novo, como se cada frase fosse uma onda que o empurrasse para a frente antes de o arrastar para trás.
Quando Lucian se calou, Igniatius permaneceu imóvel.
Depois explodiu — mas de uma explosão interior, abafada, quase vibrante.
“Então é isso que vê?”
A sua voz tremia.
“É isso que acha que vivi?
Uma disputa entre pai e mãe… seguida de uma reconciliação… de uma…”
Interrompeu-se, sem fôlego, apanhado em flagrante, como uma criança prestes a dizer uma palavra obscena.
“Um… acasalamento, sim, é isso que escreve, Lucian.
Escreve que os gemidos da trovoada seriam os gemidos de dois corpos.
Ousa escrever isso.”
Lucian não estremeceu. Tinha a calma de quem sabe que deve ocupar um lugar preciso, mesmo quando o chão treme.
Mas Igniatius já não segurava nada.
Levantou-se, deu dois passos, voltou a sentar-se — mas noutra postura, quase vulnerável, como uma criança que cai ao pé da cama onde se sentira em perigo.
“Como pode… pensar isso? De mim?
Como pode imaginar que ouvi os meus pais… Eu nunca tive pais, Lucian. Ouviu? Nunca.
Nem um rosto, nem um nome. Nada.
Não tenho pai para transformar em trovão, nem mãe para transformar em mar.
Fabricou fantasmas a partir das minhas trovoadas!”
Enterrou a cabeça nas mãos.
“Eu nasci… não sei onde. Nunca soube.
Disseram-me sempre que tinha sido ‘encontrado’.
Encontrado! Como um objecto perdido!
E você, desenha-me uma cena conjugal com gritos, discussões e… gemidos de amor.
Mas de onde viriam esses gemidos? De que corpos? De que bocas?
Eu só ouvi o vento, Lucian — nada mais que o vento!”
Bateu levemente com a palma da mão no apoio do braço — não por violência, mas por falta de equilíbrio interior, como se o gesto o impedisse de cair.
“Essas coisas… essas coisas sem memória… talvez as tenha inventado, sim… mas só depois.
Não então.
Então, eu não tinha ninguém.
Ninguém para discutir.
Ninguém para se reconciliar.
Nenhuma cama demasiado próxima.
Nenhum quarto ao lado.
Apenas a palha.
Apenas o animal.
Apenas… um ruído que vinha de cima e podia ser qualquer coisa: o mundo, o circo, o fim de um dia.
Mas não… não pais.”
Ficou um instante em silêncio, depois, numa voz muito doce, quase terna:
“Então porque escreveu isso, Lucian? Porquê?”
Ergueu os olhos: uma angústia nua, dilacerante.
Lucian escolheu então uma voz quase demasiado baixa, para que as palavras não pesassem demasiado:
“Não escrevi nada de si que o seu próprio relato não contivesse já, Igniatius.
Não inventei pais.
Apenas observei que as suas metáforas — o céu, o mar, a terra — talvez falassem mais do que imagina.
Uma metáfora nunca é pura. Transporta sempre algo do real, mesmo que esse real não tenha sido vivido pela via habitual.”
Igniatius enxugou bruscamente os olhos com a manga — um gesto de criança surpreendida a chorar.
“O que diz… então não são os meus pais?” soprou.
“Pode ser outra coisa,” disse Lucian. “Uma origem sem rosto. Uma cena que herdou sem a ter vivido.
O mundo não precisa de pais reais para fazer ouvir a uma criança vozes de pai e mãe.
Às vezes são as vozes dos outros — de todos os outros — que a criança transforma numa cena primitiva para dar a si própria um lugar num mundo onde ainda não o tem.”
Igniatius ficou petrificado, como se algo nele se tivesse deslocado um grau invisível.
Murmurou:
“Então não é que os tenha inventado… mas que eu… os procurava… no barulho do céu.”
Lucian não respondeu. Deixou a frase pairar.
Igniatius continuou, com uma emoção nova, quase terna, quase perigosa:
“Lucian… queria saber… quando escreveu essas linhas… estava a pensar em mim?
Ou estava a pensar… noutra pessoa?”
Um silêncio.
Depois, com a voz trémula:
“Em si mesmo?”
A pergunta ficou suspensa, uma lâmina suave, mas uma lâmina na mesma.
Lucian não se mexeu.
Mas Igniatius, que o observava com uma intensidade quase dolorosa, acrescentou:
“Porque às vezes… juro… parece-me que sou eu quem o escuta… que é você quem me fala através das minhas palavras.
Como se a minha trovoada… já a conhecesse.
Como se também tivesse ouvido um ruído por cima de uma cama demasiado grande.”
Deixou-se cair de novo no assento, exausto, mas mais aberto do que antes.
“Fale comigo, Lucian.
Mesmo que seja através de mim.
Fale-me de si… falando de mim.
Talvez assim encontre finalmente… aqueles que nunca tive.”




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