mercredi 5 novembre 2025

Porta oculta

 

O que vivemos é a absorção de todos os modos virtuais de expressão naquele da publicidade. Todas as formas culturais originais, todas as linguagens determinadas, absorvem-se nela porque é sem profundidade, instantânea e instantaneamente esquecida. Triunfo da forma superficial, mínimo denominador comum de todos os significados, grau zero do sentido, triunfo da entropia sobre todos os tropos possíveis. A forma mais baixa da energia do signo.
Esta forma inarticulada, instantânea, sem passado, sem futuro, sem possibilidade de metamorfose — pois é a última — exerce poder sobre todas as outras. Todas as formas actuais de actividade tendem para a publicidade, e a maioria esgota-se aí. Não necessariamente a publicidade nominal, aquela que se apresenta como tal — mas a forma publicitária, um modo operacional simplificado, vagamente sedutor, vagamente consensual (todas as modalidades aí se confundem, mas de modo atenuado, enfraquecido). Mais geralmente, a forma publicitária é aquela em que todos os conteúdos singulares se anulam no próprio momento em que podem ser transcritos uns nos outros, enquanto o próprio das enunciações “densas”, das formas articuladas de sentido (ou de estilo), é não poderem traduzir-se entre si, tal como as regras de um jogo.

Jean Baudrillard, Simulacres et simulation, tel Gallimard, p. 131-132 
 
 
 
 

 

Igniatius, diante da imagem pendurada na parede do consultório do seu psiquiatra Lucian, após um longo momento em que fora incapaz de falar dela, de súbito — sem saber porquê — falou de Dom Quixote…

Lucian insistiu, e Igniatius voltou a observá-la longamente sem dizer palavra. Nada mais saía da sua boca, e o profundo desequilíbrio que sentira persistia sem explicação. Apenas uma palavra lhe vinha à mente e aos lábios… Dom Quixote… que o senhor Lucian transformava incansavelmente em Dom Cenoura
E então… muito lentamente, sem que Igniatius se apercebesse, sem que fizesse o menor movimento, começou a entrar na imagem… não intelectualmente, como se poderia pensar, mas fisicamente, como se uma porta invisível se tivesse aberto para um presente que era também o seu passado… tudo num instante, e sem dificuldade em compreender. Tudo estava ali, caótico como devia ser! As raízes, a jangada, as ondas, as ilhas vulcânicas, os mastros mais ou menos amarrados, prestes a novas construções… as velas arrancadas aos cortinados do circo tantas vezes desmontado… remontado… e, acima de tudo, o ar do largo enchendo-lhe os pulmões e fazendo-o estremecer com o desejo de partir.
Nesse estremecimento, uma palavra irrompeu da boca ao mesmo tempo que surgia da sombra: Sangue Quente! O companheiro há tanto esquecido que o chamava alegremente:
Dom Cenoura! Estava em grande aflição… julgava-o morto! Onde se meteu?
Bastou isso para Igniatius recordar a longa cadeia de causas e efeitos que o tinham levado ao consultório do senhor Lucian. Uma pequena sombra passou-lhe na fronte, toldando-lhe ligeiramente as ideias antes de as esclarecer…
Vai-se lá entender… se o céu se cobrira numa parte da imagem, em toda a outra parte o céu se fará luminoso depois da dissipação dos nevoeiros matinais formados pelas dúvidas quanto às intenções e actos supostos do senhor Lucian.
Dúvidas que também atravessaram a porta invisível da mente de Igniatius… aqui chamado Dom Cenoura…
Se é verdade que nestas imagens se esconde alguma verdade, continuo sem saber…
Não posso ter certeza de que estas imagens emanem dele ou de mim… Poderá tudo isto ser uma manipulação na qual eu não passaria de uma lamentável marioneta?
De repente, vinda do além da imagem, a voz de Lucian ressoou. Igniatius sobressaltou-se, enquanto a voz de Lucian — quase um murmúrio — tentava delicadamente retomar o diálogo interrompido.
Lembra-se do que o trouxe até aqui?
Igniatius ficou confuso. Sentiu-se perdido e perguntou-se se este “aqui” de que falava o senhor Lucian dizia respeito ao consultório ou à imagem para a qual acreditava ter regressado…
O que, aos olhos de Lucian, era “bom sinal”…
Se para ele a questão se coloca, é porque está consciente de que existem dois espaços a disputar a permanência dos seus pensamentos…
 
 

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