samedi 13 décembre 2025

O início de uma muda



Enquanto Sang Chaud inicia a sua muda, Lucian foi ver o seu supervisor, Félix.
Não foi realmente uma escolha deliberada, mas antes uma evidência da qual ele sabia que não poderia escapar.
Ao falar-lhe de um dos seus pacientes, chamado Igniatius, tem a desagradável impressão de que aquilo que diz não é ouvido por Félix da mesma maneira que ele próprio o entende.
Isso o perturba um pouco, mas até então nada de anormal.
Ele conseguia lidar com isso.
O que ele não consegue lidar — porque é, por essência, desconhecido para ele — é o que mais tarde chamará de “a insurreição”, corporal, política e simbólica, de Sang Chaud.
Ele sabe perfeitamente que a expressão, epistemologicamente, é incorreta.
Seria, para usar palavras grandiosas, um retorno ao caos, uma ameaça à “paz civil”?
Nada e um pouco de tudo…
Nada, ou quase nada, porque diz respeito apenas a uma personagem secundária de uma história inventada por completo, imitando grosseiramente outra história — essa sim, célebre…
E um pouco de tudo, porque simbolicamente fala…
Igniatius leva às sessões alguns desenhos que diz ter encontrado numa galeria.
Esses desenhos, ao mesmo tempo claros e enigmáticos, narram principalmente a história e as aventuras — que ocorrem num arquipélago vulcânico, selvagem e desértico, submetido à força devastadora da natureza — de um certo Don Carotte(Dom Quixote) e de Sang Chaud, seu companheiro de jornada (Sancho Pança).
Nesse arquipélago, as ilhas que o compõem são mutáveis.
Aparecem e desaparecem assim como o circo que se monta e desmonta todos os dias.
Um circo que, a julgar pelos desenhos, parece destruir-se ou ser destruído (a nuance é importante) em vez de ser simplesmente desmontado.
Esse circo parecia ter sido o lar (no duplo sentido) de Don Carotte quando criança, quando vivia ali com o seu burro.
Esses desenhos são anotados e assinados com uma escrita ilegível.
As conversas entre Lucian e Igniatius seguem normalmente até que Lucian percebe que os desenhos podem ter origens diversas.
Primeira hipótese:
— Podem ser da autoria do próprio Igniatius, que os traz alegando tê-los “encontrado”.
Segunda hipótese:
— Podem ser de Igniatius… sem que ele o saiba.
O que mostraria que Igniatius já não tem pleno domínio da própria mente — que poderia não saber o que faz durante parte do seu tempo.
Terceira hipótese:
— Esses desenhos poderiam ser de Don Carotte ou de Sang Chaud… isto é, criaturas de Igniatius.

Caderno de Félix — Notas após a cena do retrato
Caderno cinzento, secção “supervisão — anomalias do transfer”

Esta noite, novamente, depois de falar com Lucian, espalhei sobre a mesa os desenhos que ele me trouxe… aqueles que Igniatius lhe entregou, e também o retrato que Lucian me mostrou.
Observei por muito tempo as figuras neles — essas silhuetas com a mesma forma de inclinar o tronco, a mesma barba recortada em ângulos vivos, a mesma linha das sobrancelhas, a mesma tensão nas mãos.
Num dos desenhos em particular, a figura sentada numa grande poltrona vermelha — tão semelhante a Lucian na sua postura de reserva atenta — vira a cabeça em direção a uma cena onde outro homem, igualmente semelhante, luta contra espirais, tentáculos, ondulações.
Parece um teatro onde o analista e o analisando se encenam no próprio espaço do desenho.
E noutra peça, uma espécie de díptico em que duas silhuetas idênticas, de cada lado de uma poltrona, parecem surgir ou fugir, como se uma lesse um livro enquanto a outra se desviava de um sopro vindo do próprio assento — novamente, a semelhança é tão forte que se poderia acreditar num duplo, num desdobramento, numa duplicação simbólica.
Anoto isto como um fato clínico essencial:
As duas figuras — a sentada, a que luta, a que lê, a que recua — têm uma semelhança tão impressionante que torna impossível dizer qual é Lucian e qual é Igniatius.
É o mesmo rosto, o mesmo tronco, o mesmo enigma.
Não uma cópia: uma oscilação.
Um rosto partilhado.
O que agora chamo de “o ponto cego” é precisamente isto:
Lucian não vê essa semelhança, embora ela seja visível à primeira vista para qualquer pessoa externa ao seu vínculo.
Esse não-ver é mais importante do que o ver.
Pois se Lucian não vê o que eu vejo, não é por negação voluntária: é por estrutura.
Ele ainda não pode reconhecer-se na imagem que Igniatius lhe estende.
Aqui se joga algo absolutamente fundamental:
Igniatius, ao procurar o autor da sua própria imagem, projetou sobre Lucian não apenas uma figura de saber, mas uma figura de origem.
E o lugar onde ele abriga essa origem… é o desenho.
Um desenho cuja escrita é ilegível, mas cujo gesto gráfico se parece com o de Lucian — algo que Lucian não pode admitir.
Se admitisse, teria de reconhecer que algo dele já circula na obra do outro.
Escrevo claramente:
Igniatius acredita, cada vez mais, que Lucian é o autor dos desenhos.
Não por paranoia — palavra pobre demais — mas por uma espécie de intuição ontológica:
“O que me toca vem de ti.”
Quando Igniatius olha para essas imagens, ele não vê alteridade: vê um emissor.
E aquilo que percebe como “traço de Lucian” pode ser apenas a projeção de uma figura que busca desde a infância, um rosto capaz de dar contorno à sua falta.
O fascinante é que Lucian, por sua vez, não vê o que Igniatius vê.
O mesmo desenho, perante ele, é cego.
O rosto é familiar sem ser reconhecível.
Como se algo dele próprio — algo enterrado, pré-verbal, anterior ao seu próprio olhar — surgisse nesses traços, mas permanecesse invisível a ele.
Uma imagem de um tempo que, para ele, nunca teve imagem.
Aqui está o ponto cego:
Lucian não pode ver-se onde Igniatius o vê,
porque isso equivaleria a admitir que ele também tem um lugar de origem em falta.
O mesmo buraco, a mesma abertura, o mesmo branco.
Esse branco que os desenhos contornam, como se traçasse uma linha ao redor de uma ausência para lhe dar forma.
Assim percebo isto:
Não é apenas Igniatius que vê Lucian no desenho.
É o desenho que usa Igniatius para revelar a Lucian uma parte de si que ele nunca pôde encarar.
A mão que desenhou não importa.
O que importa é que o desenho se tornou o espaço onde as suas duas figuras se sobrepõem sem que nenhum dos dois possa dizer qual precede o outro.
Uma cena primitiva sem cena primitiva,
um espelho sem origem.
Por fim:
Quanto mais Igniatius se convence de que Lucian é o autor,
mais Lucian será forçado a confrontar aquilo que, nele, autoriza o desenho.
Não no sentido de tê-lo realmente produzido,
mas no sentido de ter se tornado a figura a partir da qual o outro inventa o seu próprio rosto.
É um vínculo raro, perigoso, magnífico.
Um encontro de abismos.
Se Lucian não vê a semelhança,
é precisamente porque ela diz a verdade demais.
E essa verdade ainda não pode ser olhada.



 

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