Enquanto Sang Chaud inicia a sua muda, Lucian foi ver o seu supervisor, Félix.
Não foi realmente uma escolha deliberada, mas antes uma evidência da qual ele sabia que não poderia escapar.
Ao falar-lhe de um dos seus pacientes, chamado Igniatius, tem a desagradável impressão de que aquilo que diz não é ouvido por Félix da mesma maneira que ele próprio o entende.
Isso o perturba um pouco, mas até então nada de anormal.
Ele conseguia lidar com isso.
O que ele não consegue lidar — porque é, por essência, desconhecido para ele — é o que mais tarde chamará de “a insurreição”, corporal, política e simbólica, de Sang Chaud.
Ele sabe perfeitamente que a expressão, epistemologicamente, é incorreta.
Seria, para usar palavras grandiosas, um retorno ao caos, uma ameaça à “paz civil”?
Nada e um pouco de tudo…
Nada, ou quase nada, porque diz respeito apenas a uma personagem secundária de uma história inventada por completo, imitando grosseiramente outra história — essa sim, célebre…
E um pouco de tudo, porque simbolicamente fala…
Igniatius leva às sessões alguns desenhos que diz ter encontrado numa galeria.
Esses desenhos, ao mesmo tempo claros e enigmáticos, narram principalmente a história e as aventuras — que ocorrem num arquipélago vulcânico, selvagem e desértico, submetido à força devastadora da natureza — de um certo Don Carotte(Dom Quixote) e de Sang Chaud, seu companheiro de jornada (Sancho Pança).
Nesse arquipélago, as ilhas que o compõem são mutáveis.
Aparecem e desaparecem assim como o circo que se monta e desmonta todos os dias.
Um circo que, a julgar pelos desenhos, parece destruir-se ou ser destruído (a nuance é importante) em vez de ser simplesmente desmontado.
Esse circo parecia ter sido o lar (no duplo sentido) de Don Carotte quando criança, quando vivia ali com o seu burro.
Esses desenhos são anotados e assinados com uma escrita ilegível.
As conversas entre Lucian e Igniatius seguem normalmente até que Lucian percebe que os desenhos podem ter origens diversas.
Primeira hipótese:
— Podem ser da autoria do próprio Igniatius, que os traz alegando tê-los “encontrado”.
Segunda hipótese:
— Podem ser de Igniatius… sem que ele o saiba.
O que mostraria que Igniatius já não tem pleno domínio da própria mente — que poderia não saber o que faz durante parte do seu tempo.
Terceira hipótese:
— Esses desenhos poderiam ser de Don Carotte ou de Sang Chaud… isto é, criaturas de Igniatius.
Não foi realmente uma escolha deliberada, mas antes uma evidência da qual ele sabia que não poderia escapar.
Ao falar-lhe de um dos seus pacientes, chamado Igniatius, tem a desagradável impressão de que aquilo que diz não é ouvido por Félix da mesma maneira que ele próprio o entende.
Isso o perturba um pouco, mas até então nada de anormal.
Ele conseguia lidar com isso.
O que ele não consegue lidar — porque é, por essência, desconhecido para ele — é o que mais tarde chamará de “a insurreição”, corporal, política e simbólica, de Sang Chaud.
Ele sabe perfeitamente que a expressão, epistemologicamente, é incorreta.
Seria, para usar palavras grandiosas, um retorno ao caos, uma ameaça à “paz civil”?
Nada e um pouco de tudo…
Nada, ou quase nada, porque diz respeito apenas a uma personagem secundária de uma história inventada por completo, imitando grosseiramente outra história — essa sim, célebre…
E um pouco de tudo, porque simbolicamente fala…
Igniatius leva às sessões alguns desenhos que diz ter encontrado numa galeria.
Esses desenhos, ao mesmo tempo claros e enigmáticos, narram principalmente a história e as aventuras — que ocorrem num arquipélago vulcânico, selvagem e desértico, submetido à força devastadora da natureza — de um certo Don Carotte(Dom Quixote) e de Sang Chaud, seu companheiro de jornada (Sancho Pança).
Nesse arquipélago, as ilhas que o compõem são mutáveis.
Aparecem e desaparecem assim como o circo que se monta e desmonta todos os dias.
Um circo que, a julgar pelos desenhos, parece destruir-se ou ser destruído (a nuance é importante) em vez de ser simplesmente desmontado.
Esse circo parecia ter sido o lar (no duplo sentido) de Don Carotte quando criança, quando vivia ali com o seu burro.
Esses desenhos são anotados e assinados com uma escrita ilegível.
As conversas entre Lucian e Igniatius seguem normalmente até que Lucian percebe que os desenhos podem ter origens diversas.
Primeira hipótese:
— Podem ser da autoria do próprio Igniatius, que os traz alegando tê-los “encontrado”.
Segunda hipótese:
— Podem ser de Igniatius… sem que ele o saiba.
O que mostraria que Igniatius já não tem pleno domínio da própria mente — que poderia não saber o que faz durante parte do seu tempo.
Terceira hipótese:
— Esses desenhos poderiam ser de Don Carotte ou de Sang Chaud… isto é, criaturas de Igniatius.
Caderno de Félix — Notas após a cena do retrato
Caderno cinzento, secção “supervisão — anomalias do transfer”
Esta noite, novamente, depois de falar com Lucian, espalhei sobre a mesa os desenhos que ele me trouxe… aqueles que Igniatius lhe entregou, e também o retrato que Lucian me mostrou.
Observei por muito tempo as figuras neles — essas silhuetas com a mesma forma de inclinar o tronco, a mesma barba recortada em ângulos vivos, a mesma linha das sobrancelhas, a mesma tensão nas mãos.
Num dos desenhos em particular, a figura sentada numa grande poltrona vermelha — tão semelhante a Lucian na sua postura de reserva atenta — vira a cabeça em direção a uma cena onde outro homem, igualmente semelhante, luta contra espirais, tentáculos, ondulações.
Parece um teatro onde o analista e o analisando se encenam no próprio espaço do desenho.
E noutra peça, uma espécie de díptico em que duas silhuetas idênticas, de cada lado de uma poltrona, parecem surgir ou fugir, como se uma lesse um livro enquanto a outra se desviava de um sopro vindo do próprio assento — novamente, a semelhança é tão forte que se poderia acreditar num duplo, num desdobramento, numa duplicação simbólica.
Anoto isto como um fato clínico essencial:
As duas figuras — a sentada, a que luta, a que lê, a que recua — têm uma semelhança tão impressionante que torna impossível dizer qual é Lucian e qual é Igniatius.
É o mesmo rosto, o mesmo tronco, o mesmo enigma.
Não uma cópia: uma oscilação.
Um rosto partilhado.
O que agora chamo de “o ponto cego” é precisamente isto:
Lucian não vê essa semelhança, embora ela seja visível à primeira vista para qualquer pessoa externa ao seu vínculo.
Esse não-ver é mais importante do que o ver.
Pois se Lucian não vê o que eu vejo, não é por negação voluntária: é por estrutura.
Ele ainda não pode reconhecer-se na imagem que Igniatius lhe estende.
Aqui se joga algo absolutamente fundamental:
Igniatius, ao procurar o autor da sua própria imagem, projetou sobre Lucian não apenas uma figura de saber, mas uma figura de origem.
E o lugar onde ele abriga essa origem… é o desenho.
Um desenho cuja escrita é ilegível, mas cujo gesto gráfico se parece com o de Lucian — algo que Lucian não pode admitir.
Se admitisse, teria de reconhecer que algo dele já circula na obra do outro.
Escrevo claramente:
Igniatius acredita, cada vez mais, que Lucian é o autor dos desenhos.
Não por paranoia — palavra pobre demais — mas por uma espécie de intuição ontológica:
“O que me toca vem de ti.”
Quando Igniatius olha para essas imagens, ele não vê alteridade: vê um emissor.
E aquilo que percebe como “traço de Lucian” pode ser apenas a projeção de uma figura que busca desde a infância, um rosto capaz de dar contorno à sua falta.
O fascinante é que Lucian, por sua vez, não vê o que Igniatius vê.
O mesmo desenho, perante ele, é cego.
O rosto é familiar sem ser reconhecível.
Como se algo dele próprio — algo enterrado, pré-verbal, anterior ao seu próprio olhar — surgisse nesses traços, mas permanecesse invisível a ele.
Uma imagem de um tempo que, para ele, nunca teve imagem.
Aqui está o ponto cego:
Lucian não pode ver-se onde Igniatius o vê,
porque isso equivaleria a admitir que ele também tem um lugar de origem em falta.
O mesmo buraco, a mesma abertura, o mesmo branco.
Esse branco que os desenhos contornam, como se traçasse uma linha ao redor de uma ausência para lhe dar forma.
Assim percebo isto:
Não é apenas Igniatius que vê Lucian no desenho.
É o desenho que usa Igniatius para revelar a Lucian uma parte de si que ele nunca pôde encarar.
A mão que desenhou não importa.
O que importa é que o desenho se tornou o espaço onde as suas duas figuras se sobrepõem sem que nenhum dos dois possa dizer qual precede o outro.
Uma cena primitiva sem cena primitiva,
um espelho sem origem.
Por fim:
Quanto mais Igniatius se convence de que Lucian é o autor,
mais Lucian será forçado a confrontar aquilo que, nele, autoriza o desenho.
Não no sentido de tê-lo realmente produzido,
mas no sentido de ter se tornado a figura a partir da qual o outro inventa o seu próprio rosto.
É um vínculo raro, perigoso, magnífico.
Um encontro de abismos.
Se Lucian não vê a semelhança,
é precisamente porque ela diz a verdade demais.
E essa verdade ainda não pode ser olhada.

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